“A gente queria oferecer a vocês uma surpresa muito agradável: Gal Costa, a minha cantora favorita”. É dessa forma que João Donato chama Gal para dividir com ele alguns números de um show que realizou no dia 3 de dezembro de 1993 na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro.
Gal entra em cena e começa a improvisar em cima da melodia de Nasci Para Bailar, uma das composições mais famosas de Donato, que está ao piano. Ao avistar Arnaldo Antunes na plateia, Gal pergunta a Donato o que ele acha de chamar Antunes para o palco. Formam, assim, um trio que durante quase 10 minutos brinca em diferentes andamentos – tudo com condução de Donato e sua banda.
A certa altura, Donato grita ‘pera’. Os três começam, então, uma divertida brincadeira com nomes de frutas. O ritmo é o bolero. Mas o espírito é puro jazz. O público se diverte e, no final, aplaude por quase três minutos.
O arquivo em áudio desse encontro, o último no palco entre Gal e Donato, existe – e em excelentes condições sonoras. O guardião dessa preciosidade é o produtor e pesquisador musical Marcelo Froes, dono do selo Discobertas.
“Desconfio até que exista registro em vídeo também”, diz Froes ao Estadão. O pesquisador encontrou o material no meio de quase 800 fitas cassetes que fazem parte do acervo de Donato. Fróes as ouviu e catalogou os conteúdos delas entre 2014 e 2016. Ele disse que chegou a propor para Donato em 2021 que o material fosse lançado.
“Gal também ouviu e mandou dizer que aprovava, mas naquele momento estava lançando produto. Pediu que esperássemos um pouco. Mas aí João (Donato) entrou no estúdio para gravar com (Jards) Macalé e tivemos que esperar. Agora nenhum dos dois está aqui. Como ambos gostaram da ideia, eu resolvi tentar mais uma vez”, diz.
Além de Nasci Para Bailar – canção que Gal nunca gravou – o áudio ao qual o Estadão teve acesso traz Gal e Donato em outras cinco músicas: Até Quem Sabe, A Rã, Flor de Maracujá, Nua Ideia e Verbos do Amor. Todas foram gravadas por Gal ao longo da carreira.
Verbos do Amor, parceria de Donato com Abel Silva, lançada pela cantora no disco Minha Voz (1982) , é executada no show com arranjo diferente do registro original, somente em voz e piano. Uma versão jazzística, com delicados vocalizes de Gal ao final.
Nua Ideia, parceria de Donato com Caetano Veloso, que Gal gravou no disco Plural, aparece com arranjo bem próximo ao criado pelo próprio Donato para o registro fonográfico.
Em Até Quem Sabe, A Rã e Flor de Maracujá, o entrosamento de Gal e Donato é total. Nas três canções, eles repetem a parceria do disco Cantar, lançado por Gal em 1974. Até Quem Sabe ganha introdução mais longa que a consagrada na gravação original.
Em A Rã, Gal, aquela altura com uma voz mais madura, evoca a suavidade do seu cantar dos anos 1970. Em Flor de Maracujá, a cantora alonga as notas.
Essa apresentação ocorreu dentro de um projeto de nome Sexta Básica e marcou o reencontro entre Gal e Donato no palco após quase 20 anos, desde que haviam excursionado com a turnê do disco Cantar. Gal, em entressafra de projetos, havia se apresentado apenas uma vez no Rio naquele de 1993. Esses dois fatores geraram grande expectativa em torno do show. Os ingressos se esgotaram rapidamente. “Esse reencontro significou muito para ambos”, diz Fróes, que já produziu tanto relançamentos de Donato quanto de Gal.
Em uma reportagem publicada pelo Estadão no dia da apresentação, Gal falou sobre estar no palco com Donato novamente. “É sempre bom trabalhar com João, desfrutando de sua musicalidade tão fluente e de alta qualidade”, disse a cantora. Ela fez questão de avisar que daria apenas de uma “canja”.
João Donato fez um show com cerca de 25 canções – Gal só cantou seis. O restante do material, segundo Froes, não resistiu ao tempo. Na banda de Donato estavam o baterista Rubinho, o contrabaixista Jamil Joanes e o percussionista Sidinho.
O lançamento das faixas que juntam Donato e Gal depende agora da autorização de seus herdeiros.
Gal Costa foi cantora fundamental na volta de João Donato ao Brasil
Em uma entrevista para o Estadão em junho de 1982, o músico e compositor João Donato disse que, ao voltar dos Estados Unidos, em 1972, após quase uma década no país, teve uma melancólica constatação. “Metade dos meus amigos estava morta”.
Com muitas composições inéditas na bagagem, já com a fama de grande pianista, mas ainda não popular em seu País, Donato precisava trabalhar. O cantor Agostinho dos Santos o aconselhou a procurar bons compositores para letrar em suas músicas – um caminho para tocar no rádio. Caetano Veloso foi um dos primeiros. Faltava, então, quem as cantasse.
Gal, sempre aberta às novidades, abraçou Donato. No disco Cantar, de 1974, gravou A Rã, com letra de Caetano, e Flor de Maracujá e Até Quem Sabe, ambas com versos de Lysias Enio. A cantora se tornaria, com isso, a grande intérprete de Donato – e, não à toa, sua preferida.
O álbum e o show Cantar não fizeram sucesso. Em um depoimento reproduzido no livro Gal Costa (Editora Bei, 2022) a cantora fala sobre esse período. “Com o fracasso do Cantar, fiquei retraída. Entrei em crise, três anos sem fazer nada”.
No álbum seguinte, Gal Canta Caymmi, lançado em 1976, Donato, mais uma vez, estava ao lado da cantora. Ele tocou o piano na maioria das faixas e assinou os arranjos das músicas Vatapá, Peguei um Ita no Norte, Só Louco e Nem Eu.
Gal seguiu gravando Donato ao longo da carreira. Além de Verbos do Amor (1982), Nua Ideia (1990) e Simples Carinho (1999), lançou Ecstasy, parceria do músico com Thalma de Freitas, no álbum Estratosférica, de 2015. Como de costume, Donato tocou piano elétrico na faixa, porém ele e Gal não se encontram no estúdio para a gravação.
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