Now and Then, a nova música dos Beatles que acaba de ser lançada, choca o ouvinte por um simples motivo: a banda mais influente de todos os tempos consegue se reinventar mesmo tendo seu fim decretado há mais de cinquenta anos.
É verdade que a canção rascunhada por John Lennon no final dos anos 1970, que há anos circula na internet, não traz nenhuma grande surpresa para os fãs do quarteto de Liverpool, mas ainda assim é capaz de arrancar lágrimas do mais desconfiado beatlemaníaco. Isso porque a faixa de 4:08 evoca um sentimento de luto, pela saudade de John e George, e traz um clima de magia: em 2023, os Beatles puderam se reunir mais uma vez.
Dois dos principais especialistas em Beatles no Brasil deram suas primeiras impressões ao Estadão. O veterano Marco Antonio Mallagoli é fundador do histórico fã-clube Revolution, criado em 1979. Ele é um dos poucos brasileiros a ter conhecido pessoalmente John, Paul, George e Ringo. “Do ponto de vista artístico, Now and Then não acrescenta muita coisa na carreira dos Beatles, pois ela é impecável. Não vi muito motivo pra essa música ser lançada agora, pois é uma gravação conhecida. Mas achei a versão fantástica e, pelos comentários dos fãs, não vi ninguém que não amou essa música”, conta Marco.
O mineiro Gilvan Moura, dono do canal The Beatles School, com mais de 50 mil inscritos no YouTube, lembra que o lançamento é muito especial para os fãs, pois há uma geração inteira que nunca viu uma canção nova do grupo. “É um presente que supera a expectativa dos fãs. O que eu vejo é uma tentativa do Paul de se despedir do grande momento artístico de sua vida. Estamos falando de um senhor de 81 anos que olha para a oportunidade de trabalhar com John Lennon mais uma vez. Now and Then tem uma força poderosa por causa da tradução, que pode ser “de vez em quando” e também “agora e antes” – o “agora” seria Paul e Ringo, e o “antes” seria John e George”, diz Gilvan.
Antes, agora e depois...
A história de Now and Then tem, basicamente, três etapas. John gravou a demo no piano, entre 1977 e 1979, em seu apartamento na cidade de Nova York, e não teve tempo para trabalhá-la em estúdio. Ele foi assassinado pouco depois e muitos especulam que a letra seria uma homenagem a Paul, pois suas últimas palavras ao ex-parceiro teriam sido: “Think about me every now and then, old friend” (pense em mim de vez em quando, velho amigo).
Mais de uma década depois da morte de John, os integrantes remanescentes se reuniram em 1994 para o projeto Anthology, que celebrou a obra dos Beatles com uma coletânea de três volumes, um livro e um documentário. McCartney recebeu algumas fitas de Yoko Ono que incluíam, principalmente, quatro gravações caseiras de seu falecido marido: as belíssimas Free as Bird e Real Love foram concluídas por Paul, George, Ringo e o produtor Jeff Lyne. Já Grow Old With Me, que aparecera num álbum póstumo de John, foi prontamente ignorada. Now and Then, por sua vez, estava afetada por um alto zumbido presente na fita, impossível de ser removido com os equipamentos da época, e também foi rejeitada – sendo classificada por George como “lixo”.
Quase trinta anos depois, um certo cineasta neozelandês responsável por nada menos que a trilogia de O Senhor dos Anéis conseguiu ressignificar o filme Let It Be (1970) com a gloriosa versão Get Back (2021), produzida em três partes para o Disney+. A tecnologia inovadora utilizada por Peter Jackson no documentário permitiu isolar instrumentos e sons específicos para compor a edição. Logo, o mesmo truque foi usado para extrair a voz de John da gravação chiada de Now and Then.
Essa nova possibilidade é revolucionária e abre um novo horizonte não apenas para os Beatles, mas para a indústria fonográfica de um modo geral. A técnica foi usada na remixagem do disco Revolver (1966) e nas coletâneas 1962-1966 e 1967-1970, que serão relançadas em novembro com Now and Then inserida.
- Veja o curta-metragem que conta a história de Now and Then:
Como a canção ganhou vida
Now and Then, acima de tudo, é um trabalho arqueológico. A voz de John tem destaque e vai ganhando escopo pela intensidade da seção rítmica. Paul refaz o piano da gravação original e adiciona uma linha de baixo que serve ao propósito da melodia. Ele também reforça a base de guitarra deixada por George, quando a canção foi rapidamente trabalhada nos anos 1990, com um conciso solo de slide guitar que o falecido guitarrista aprovaria (como aconteceu em Taxman, por exemplo).
Ringo emprega uma batida direta, sem firulas ou viradas chamativas. Há ainda um melancólico arranjo de cordas que faria o saudoso produtor George Martin sorrir, não apenas pela brilhante execução da orquestra, mas porque seu filho Giles foi o responsável pela produção da música ao lado de Paul.
Giles usou trechos de Here, There & Everywhere, Because, e Eleanor Rigby para montar a harmonia de três partes que apenas John, Paul e George sabiam fazer. A ideia inicialmente deixou McCartney nervoso, pois trata-se de um tipo de reconstituição, mas o resultado final o agradou. Esse, porém, foi o único aspecto “não natural” da faixa, haja vista que não há qualquer uso da prática de imitações virtuais batizada de “inteligência artificial”.
O fim?
Fica difícil acreditar no marketing por trás da “última canção dos Beatles”, pois existe material inédito nos cofres da Apple. O ato experimental Carnival of Light, de mais de 10 minutos de duração, é alvo de cobiça dos fãs há décadas. E no próprio documentário Get Back, há registros de canções nunca finalizadas pela banda como Just Fun, Thinking Of Linking, entre outras.
Paul, aos 81 anos, e Ringo, aos 83, podem até garantir que Now and Then seja o ponto final na história dos Beatles. Mas quem garante que seus filhos e os herdeiros de John e George estão de acordo?
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