Renato Russo, Marília Mendonça, Chorão: músicas com vozes de ídolos mortos geram sucesso e polêmica

Faixas criadas com vozes simuladas por inteligência artificial se espalham nas redes com milhares de audições. Filho de Renato Russo já mandou tirar vídeo do ar. Questão envolve uso da tecnologia e direitos autorais e abre debate: agora ídolos são imortais?

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Foto do author Sabrina Legramandi
Atualização:

Imagine poder ouvir infinitos lançamentos póstumos de ídolos que já morreram. Ou, ainda, poder fazer com que a voz de seu artista preferido cante a música que você mais gostaria de ouvir na interpretação dele. A proposta parece enredo de ficção científica, mas, com o uso da inteligência artificial, isso já é possível.

Basta entrar nas hashtags relacionadas ao tema no TikTok para se deparar com duetos e gravações impossíveis de serem feitas na vida real. Usuários da plataforma de vídeo no exterior se emocionam com Freddie Mercury cantando uma versão de Yesterday, dos Beatles, e com um dueto feito entre Michael Jackson e Bruno Mars. Agora, a onda chega ao Brasil.

Como funciona?

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As recriações são feitas por uma técnica chamada machine learning, ou treinamento de máquina, como explica o tiktoker que se identifica como Lamerazi, de 29 anos, natural de Santo André, em São Paulo. Ele aponta que o algoritmo é alimentado por arquivos de voz e aprende como uma determinada voz se comporta. Dependendo do nível de treinamento, é possível, até mesmo, imitar sotaques.

A tendência já envolve artistas brasileiros. Marília Mendonça, Renato Russo e Chorão já possuem gravações feitas com as suas vozes e pela inteligência artificial. Lamerazi foca em vozes e músicas marcantes do sertanejo.

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O tiktoker conta que se interessou pelo uso da inteligência artificial para criar personagens em jogos de videogame e resolveu compartilhar os trechos de canções para receber feedbacks. “Eu postei da Marília Mendonça para pegar o feedback do pessoal (sic). [...] E depois eu postei o do Cristiano Araújo e comecei a trabalhar um pouquinho na voz dele também”, comenta.


Atualmente, Lamerazi soma quase 20 mil seguidores na plataforma de vídeos. Suas postagens que mais viralizam são as que trazem a voz da Rainha da Sofrência – uma em que Marília faz um dueto com Ana Castela ganhou 1,3 milhão de visualizações.

O processo pode parecer complexo, mas está ficando cada vez mais simples, como explica o usuário do Twitter conhecido por Jefinho, que preferiu não ser identificado. Se antes uma recriação levava, em média, oito horas para ser feita, hoje apenas uma hora e meia já é suficiente para o treinamento da máquina.

Ele, que sempre trabalhou com mídia, começou a experimentar a inteligência artificial para auxiliar o seu dia-a-dia. Jefinho conta participar, até mesmo, de um grupo de conversas em que pessoas da área falam sobre as novidades que envolvem a tecnologia.

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O usuário do Twitter lembra que a tendência de criar músicas com inteligência artificial já é comum em países orientais. Na Coreia do Sul, por exemplo, existem cantores de k-pop virtuais criados pela tecnologia.

Por esse motivo, Jefinho teve de lidar com um programa em mandarim. Ele explica que o processo de criar uma música por inteligência artificial envolve três elementos: o timbre de voz do artista escolhido para cantar, a performance original e a mixagem.

Filho de Renato Russo barrou

Os experimentos dele impressionam e divertem usuários da rede. Recentemente, Jefinho fez uma brincadeira com uma versão de Batom de Cereja, música da dupla Israel e Rodolffo, cantada pelo vocalista do Legião Urbana. “Eu estava fazendo [esse experimento] só por curiosidade. E escolhi compartilhar Batom de Cereja por ser uma música ‘de zoeira’ para que o pessoal (sic) achasse engraçado”, conta.

A escolha por Renato Russo, segundo Jefinho, se deu pela grande quantidade de material disponibilizada do artista na internet. “O Renato tem muito material de entrevista, e o treinamento da IA fica melhor com fala e música”, diz.

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Apesar de ter feito o experimento em tom de brincadeira e ter colocado vários avisos ao longo do trecho de que a música era feita por IA, a publicação de Jefinho tomou proporções que ele não imaginava. A recriação chegou até Giuliano Manfredini, filho do cantor e responsável pela Legião Urbana Produções, empresa que gerencia o espólio da banda e o material do artista.

Em comunicado enviado ao Estadão, a empresa de Manfredini disse que está avaliando providências jurídicas sobre o caso em conjunto com a gravadora Universal. O trecho da canção já foi retirado do ar.

“Sobre as músicas criadas por inteligência artificial na voz do Renato Russo, nós da Legião Urbana Produções Artísticas tomamos conhecimento do caso e entramos em contato com a gravadora Universal, que nos encaminhou para o departamento jurídico e o mesmo está avaliando que providências são cabíveis.”

Em nota também enviada à reportagem, Jefinho reforçou que a recriação foi feita em tom de brincadeira e sem o objetivo de recriar uma obra musical “de verdade”. Leia na íntegra:

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“É uma brincadeira, obviamente. A ideia é justamente imaginar algo com o timbre do Renato e tentando performar parecido com ele, obviamente imaginando algo que ele jamais faria. Foram 30 e poucos segundos, cheio de avisos que era gerado por inteligência artificial, uma experimentação para mostrar o que a IA era capaz. Não creio que alguém realmente tenha levado isso a sério ou até mesmo tenha ‘apreciado’ aquilo como uma apresentação musical ‘de verdade’.”


Uso da voz por IA pode esbarrar em direitos autorais

Apesar de ser um recurso cada vez acessível, a inteligência artificial deve ser usada com cautela, como explica o advogado Daniel Campello, especializado em direitos autorais. Ele ressalta que o uso da voz de artistas se relaciona com os direitos conexos, uma das facetas do direito autoral.

Segundo Campello, os direitos conexos envolvem um viés moral, já que protegem os cantores de terem as vozes modificadas ou reutilizadas sem autorização expressa. O advogado diz que ainda há o direito patrimonial da gravação, o que também exige uma autorização da produtora fonográfica ou gravadora para que a voz seja usada.

Em relação a artistas que já morreram, o direito patrimonial tem “prazo de validade” e dura entre 50 e 70 anos, a depender do país, após o lançamento do fonograma contendo a voz do artista. Os direitos morais, porém, jamais terminam.

“A voz de alguém é sua marca, sua expressão, tanto assim que é algo protegido por direito autoral”, comenta Campello. “Não é ético que alguém seja usado para cantar uma melodia e letra que ele não acredite como expressão artística. A música é uma junção de criação da composição com a sua interpretação, de modo que a expressão artística não pode ser vilipendiada dessa forma”, completa.

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Contudo, para o advogado, a tecnologia não é inimiga dos seres humanos e das criações artísticas. A inteligência artificial pode facilitar processos que demandam uma repetição de tarefas padronizáveis. No caso das músicas, a IA pode ajudar na composição de novas melodias e letras e produção de batidas, por exemplo.

“Não significa que o uso da IA como ferramenta seja algo negativo ou reprovável, muito ao contrário. Entendo que esse novo aspecto da tecnologia já está revolucionando nossa indústria com transformações com alto grau de disrupção”, comenta Campello.

O Estadão procurou as famílias de Marília Mendonça e de Chorão, mas não teve retorno até a publicação deste texto.

Solução é valorizar atividade e criatividade humana

Jefinho diz que, ainda que tenha feito diversos experimentos que envolvem a IA, ele se posiciona contra o uso da tecnologia para fins comerciais. Ele cita a criação de um anúncio da Coca-Cola usando o recurso. “Aquilo usou o trabalho de outros artistas que não foram remunerados”, comenta.

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O usuário do Twitter, porém, vê com bons olhos o uso da tecnologia para a criação de memes nas redes sociais, por exemplo. “Desde que não tenha lucro, eu acho que é bacana. Eu acho que é uma ‘nova camada de meme’”, brinca.

Lamerazi também enxerga a IA como “uma ferramenta potencialmente perigosa”. O tiktoker diz já ter recusado propostas para dar cursos sobre como usar a inteligência artificial. Ele ainda comenta que recebe pedidos para recriar recados com vozes de parentes mortos de seguidores.

Eu fico um pouco pensativo. Porque, e se o ser humano acabar se acostumando com isso, não vencer o período de luto e coisas desse tipo?”

Lamerazi

O tiktoker pontua que tenta colocar limites para suas recriações. “Eu estou tentando tratar tudo com certa responsabilidade. Por mais que sejam vozes artificiais, elas remetem a pessoas importantes para o Brasil inteiro. [...] Eu sempre posto só um minuto e evito que as vozes falem coisas que possam ser prejudiciais para a memória”, conta.

Ele afirma que já teve de recusar apelos para fazer músicas completas, usar essas vozes em composições autorais das pessoas que assistem aos seus vídeos ou gravar mensagens das vozes para fãs. “Recuso independente do valor que seja. [...] Não quero lucrar diretamente ou comercializar essas vozes”, diz.

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Para Campello, a solução para o bom uso da tecnologia é “criar limites para que a criação humana seja sempre privilegiada”.

Criações humanas com alta carga de complexidade e criatividade jamais poderão ser substituídas por IA. Ou alguém crê que um robô pode criar uma obra-prima como Garota de Ipanema, uma das músicas mais conhecidas e regravadas da história da música?”

Daniel Campello

Ele também ressalta que a legislação brasileira ainda possui falhas e precisa ser adaptada para que a IA passe a ser apenas uma ferramenta. “A legislação brasileira não está adaptada sequer ao mundo das plataformas de streaming, muito menos para as questões de inteligência artificial”, aponta.

Segundo o advogado, um “movimento de reforma na legislação de direito autoral” permitiria, até mesmo, que o País passasse a fazer um uso positivo do recurso. “Precisamos adaptar rapidamente nosso ambiente legal para podermos surfar nessa onda de forma positiva e com a proteção devida à criação humana”, diz.


*Estagiária sob supervisão de Charlise de Morais

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