São poucos, muito poucos mesmo, os músicos que conseguem a façanha de se reinventar a cada nova gravação, a cada nova aventura artística. Nomes como Igor Stravinsky, o trompetista Miles Davis ou Duke Ellington. E, entre os vivos, um deles é o guitarrista Pat Metheny, nascido 66 anos atrás em Kansas City, nos Estados Unidos. Em 1976, em seu primeiro álbum pela ECM, Bright-Size Life, gravado em estúdio na Alemanha ao lado do baixista Jaco Pastorius e do baterista Bob Moses, mostrou novos caminhos para a guitarra-jazz. Intensidade, solos musicalmente ricos mas nem por isso cerebrais, o jovem músico de 22 anos unia o melhor do “ECM sound” europeu e do jazz fusion norte-americano.
Entre 1976 e 2020 lançou mais de 150 gravações, como líder ou integrando grupos. Mas seu mais recente álbum, Road To The Sun, lançado mês passado pela ECM, é um inesperado, surpreendente “turning point”. O mestre do improviso compôs duas extensas suítes, uma para violão solo, outra para quarteto de violões. Tudo escrito na partitura, como na música de concerto.
Numa entrevista recente, Metheny diz que “é sempre difícil para mim me relacionar com questões envolvendo gênero. A música é singular, existe num reino sem fronteiras”. E confessa que sentiu um prazer especialíssimo em compor para músicos como os quatro consagrados violonistas do Los Angeles Guitar Quartet (LAGQ) e Jason Vieaux. “Sua tradição muito particular exige que todos os aspectos da música sejam detalhados em notação. Por meio das notas escritas no pentagrama, eles podem encontrar seu lugar na música.”
Pela primeira vez Metheny fez música totalmente escrita, como no universo clássico. E construiu duas suítes que já se pode considerar como obras importantes da música contemporânea para cordas dedilhadas. Four Paths tem quatro movimentos e 20 minutos de duração. É uma suíte para violão, interpretada por Jason Vieaux, de 47 anos. Numa análise minuciosa e bastante técnica, Scott Cmiel, professor de violão no Conservatório de São Francisco, indica que “toda a suíte é construída com motivos e harmonias do primeiro movimento, modificados em estilos muito diferentes”. Ao que parece, Metheny adota a técnica da “forma cíclica” do compositor belga César Franck (1822-1890), em que cada movimento é baseado na transformação dos temas dos movimentos anteriores. O segundo apresenta parentesco com elegantes levadas de bossa nova. O terceiro é quase um moto perpétuo com um interlúdio lírico central. E o quarto parte do tema do segundo movimento abrasileirado, com um hipnótico trêmolo, Já é uma das grandes peças para violão deste início de século 21.
Já Road to the Sun respira outros ares, mistura folk, country, jazz e música experimental. Foi escrita para o Los Angeles Quartet. Com quarenta anos de existência, o LAGQ já gravou com a cantora Luciana Souza (Telarc, 2007) e fez a primeira gravação de Interchange, peça que Sérgio Assad compôs especialmente para o quarteto (Telarc, 2010).
Com 30 minutos de duração, tem seis movimentos, como os da suíte anterior sem título. A coesão entre eles é menor do que na suíte solo. Aqui fala mais alto o pluralismo estilístico. O terceiro movimento, por exemplo, é um blues lento, o quarto é construído sobre um groove, ou ostinato, se preferirem, que começa plácido, em contraponto, para de repente instaurar técnicas expandidas no último minuto. Uma colher de chá de vanguarda, com direito a harmônicos naturais e glissandi rascantes que desembocam súbito (sem pausa) no quinto movimento, tranquilo e bem comportado (com a participação luxuosa do compositor ao lado do quarteto). Uma viagem maravilhosa pelo mundo das cordas dedilhadas, com músicos excepcionais. Afinal, os grandes músicos de jazz acabaram optando, em vários momentos de suas carreiras, por formas mais ambiciosas. Basta lembrar das suítes e concertos sacros de Duke Ellington. Metheny considera que seu gosto por obras como estas suítes é consequência de sua “rejeição ao retrocesso atual da nossa cultura, em que tudo se reduz a frases de efeito e as nuances se perdem”.
A faixa-bônus é outra surpresa formidável. O compositor volta a ser intérprete e toca Für Alina, do compositor estoniano Arvo Pärt, hoje com 85 anos. Com um diferencial: Pat a reinventa dedilhando seu famoso violão Pikasso, com “k” mesmo, de 42 cordas e três braços, concebido pela luthier Linda Manzer. Sua forma tripartite lembra a pintura cubista que se tornou a marca do genial pintor catalão. São três violões acústicos num só. Sua sonoridade é impressionante, pelos graves profundos até os tons vibrantes mais agudos, que evocam a cítara.
Für Alina foi escrita em 1976, depois de um longo período sabático, em que Pärt passou a explorar as ressonâncias características dos sinos medievais. Chamou-o de estilo tintinnabuli. A melodia, uma nota por compasso, cresce na dinâmica e decresce – um processo repetido várias vezes. É preciso entrar no clima para saborear suas sutilezas e compartilhar com Pat Metheny o modo magistral como a reinventa e capta a melancolia que a peça transmite. Tudo escrito, sem improviso.
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