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Análise|Sala São Paulo, 25 anos: casa da melhor orquestra da América Latina permanece majestosa, mas isolada

Sede da Osesp ainda é referência internacional e um dos símbolos mais importantes de um projeto até então inédito no País, mas é ponto de luz solitário no centro de SP; relembre sua história e os momentos inesquecíveis protagonizados por grandes artistas em seu palco

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Por João Marcos Coelho

O único verso que Gustav Mahler acrescentou ao poema de Klopstock no movimento final de sua Sinfonia no. 2, apelidada Ressurreição é cantado pela contralto solista: “Oh, acredita, meu coração... não nasceste em vão, não sofreste em vão”. E soará tão emblemático hoje como no concerto de 25 anos atrás, em 9 de julho de 1999, que inaugurou a Sala São Paulo. Permanece um dos símbolos mais importantes de um projeto inédito no País, concebido pelo maestro John Neschling a partir de 1997 e viabilizado pelo governo do Estado.

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Hoje, a Osesp é a melhor orquestra latino-americana, com mais de uma centena de gravações, treze turnês internacionais pelos Estados Unidos e Europa. E a Sala São Paulo já foi muitas vezes visitada por músicos, grupos camerísticos e orquestras de todas as latitudes, e equiparada em qualidade e adequação à boa prática da música orquestral às melhores do mundo, como a Gewandhaus em Leipzig e o Musikverein de Viena, entre outras salas de elite do universo seleto da música de concerto.

Se quem casa quer casa, diz o ditado, então toda orquestra precisa de uma sede para chamar de sua. No Brasil, a Osesp é a prova viva e mais longeva de que este mantra é essencial. E pode orgulhar-se de já ter dado um filhote, a Filarmônica de Minas Gerais, concebida e concretizada 15 anos atrás em Belo Horizonte pelo maestro Fábio Mechetti, que deu um salto fantástico nos últimos nove anos porque... inaugurou sua sede, a moderníssima Sala Minas Gerais. Mas na capital mineira o projeto já nasceu com o objetivo de um dia ter sede própria. Não foi o caso da Osesp.

Sala São Paulo, que completa 25 anos, é considerada patrimônio cultural da cidade de São Paulo. Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Daí ser muito adequada a escolha desta sinfonia para inaugurar a Sala São Paulo. É para relembrar, a cada efeméride como esta de 2024, que para renascer é preciso não só falar das dores do parto, mas de uma infância e adolescência precaríssimas. O itinerário da orquestra, que comemora em 2024 seus 70 anos desde a criação oficial, em 1954, foi cheia de muitos baixos e raros altos. Funcionou irregularmente até 1973, quando o maestro Eleazar de Carvalho assumiu sua direção artística e regência titular.

Por 23 anos, o maior regente brasileiro - único que regeu as maiores orquestras do planeta, nos Estados Unidos e na Europa - comeu o pão que o diabo amassou. Com orçamentos cobrindo apenas os custos fixos, ou seja, salários dos músicos e da salinha acanhada de 2x2 metros que ele ocupou por anos no Teatro de Cultura Artística, Eleazar socorria-se com amigos de prestígio internacional, como o violinista Sidney Harth (1925-2011). Nos anos 1980, o caos: a orquestra ensaiava e se apresentava na Sala Copan, o antigo Cine Copan, na avenida Ipiranga, com forte cheio de mofo no palco e na plateia. Nos seis anos finais de Elezar, de 1989 a 1996, apresentou-se no Memorial da América Latina.

Em 1997, ano seguinte à morte de Eleazar, John Neschling assumiu a direção da Osesp. Teve tudo que Eleazar jamais sonhou: verbas generosas para atrair novos músicos, muitos do exterior, e, acima de tudo, a sacada de se transformar a Estação Sorocabana na Praça Júlio Prestos numa moderna sala de concertos.

Até 2010, Neschling viveu “28 horas” por dia na Sala São Paulo, e isso alavancou exponencialmente as virtudes da orquestra e consolidou o espaço como único no país. Foi naquela década dourada que Isaac Karabtchevsky gravou a integral das sinfonias; Neschling e seu assistente, Roberto Minczuk, gravaram as Bachianas e os Choros. Edições críticas foram editadas destas obras seminais da música brasileira. Pela primeira vez, qualquer orquestra no globo podia tocar Villa-Lobos porque as partituras são de primeira qualidade.

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Ensaio da Osesp (Orquestra Sinfônica de São Paulo) com o maestro John Neschling e coro e solistas de Verdi, na Sala São Paulo, em 2006. Foto: Evelson de Freitas/Estadão

A segunda década, após a saída de Neschling, teve altos e baixos – desta vez muito mais altos do que baixos. Mas a Osesp começou a sofrer as dores do rodízio de maestros titulares internacionais. Todos de reconhecida competência, como Marin Alsop, a mais longeva e a menos presente no dia-a-dia da orquestra.

Entrementes, a Sala destacou-se como o espaço mais privilegiado para temporadas internacionais das sociedades de concerto como a Cultura Artística e o Mozarteum. A forte captação de patrocínios via leis de incentivos fiscais também fez as temporadas da Osesp subirem vários degraus de qualidade e quase ilimitadas opções de escolha de solistas. É verdade que pendendo às vezes exageradamente para os britânicos. Mas, levando-se em conta também os demais concertos internacionais que aconteceram na Sala, a lista é ilustre. Por exemplo, o casal 20 da música russa pré-invasão da Polônia, a soprano Anna Netrebko e o maestro Valery Gergiev. Entre os pianistas, um cardápio extraordinário, de Evgeni Kissin a Pierre-Laurent Aimard, de Marc-André Hamelin a Paul Lewis, de Andras Schiff a Nelson Freire.

Um excelente ingrediente que foi potencializado a partir da saída de Neschling foi o das residências artísticas – grandes músicos que vieram e por duas semanas solaram com a orquestra, fizeram recitais e música de câmara – e sobretudo as encomendas a compositores. É por isso que a Sala é importante. Mas o estratagema de formar num consórcio de orquestras internacionais que encomendam obras a compositores atuais proeminentes é mais um gesto de relações públicas e lobby para adentrar nos mercados internacionais. John Adams, por exemplo, sequer veio para a chamada “estreia latino-americana” de uma obra co-encomendada pela Osesp e outras orquestras. Que, aliás, aconteceu mais de um ano depois da estreia mundial.

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É preciso olhar para fora, claro. Mas isso não significa investir neste tipo de co-encomendas. Estão aí os compositores brasileiros, que, aliás, foram bem aquinhoados pela Osesp em encomendas nestes 25 anos. O senão: sempre obras curtas, de no máximo 15 minutos.

De 2020 para cá, descontando-se a pandemia, o atual diretor artístico e regente titular foi o primeiro a reeditar num só profissional as duas funções desde Neschling. E os frutos estão visíveis, ou melhor, audíveis. Permanece, entretanto, o fato de que ele, como os anteriores, não fica mais do que 10 ou 12 semanas por ano por aqui. Não chega a ser como o maestro globe-trotter finlandês Klaus Mäkelä que com apenas 28 aninhos vem acumulando orquestras de ponta como quem coleciona figurinhas. O pleno êxito de Fábio Mechetti na Filarmônica de Minas Gerais autoriza-nos a pensar que seu exemplo pode ser replicado com sucesso.

Apresentação da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (Osesp), na Sala São Paulo, realizada sem a presença do público, em 2020. Foto: Werther Santana/Estadão

Quando o projeto da Sala São Paulo foi lançado, falava-se numa revitalização do centro, sobretudo da Praça Júlio Prestes. Chegou-se a sonhar com um grande complexo dedicado à dança onde outrora foi a Rodoviária de São Paulo, de frente para a Estação Júlio Prestes e para a Sala, juntando também o Museu da Língua Portuguesa e a Pinacoteca. Seria um simulacro do famosíssimo Lincoln Center, em Manhattan, que abriga entre outros o Metropolitan Opera House, Jazz at Lincoln Center, a Juilliard School, New York City Ballet e Filarmônica de Nova York.

Vinte e cinco anos depois, a imponente, majestática Sala São Paulo permanece isolada, solitária, na Praça Júlio Prestes. Perdão. Sozinha não. Divide aquele espaço com a Cracolândia que sempre chamou aquele lugar de seu pedaço preferencial. Um quarto de século atrás pensava-se numa reurbanização da área provocada pela presença da Sala. A realidade é outra: há algum tempo ubers e táxis comprimem-se no pátio após os concertos para apanhar os frequentadores da sala. E também construiu-se um boulevard que leva o público da Sala do metrô para dentro do completo da Sala São Paulo, sem nenhum contato com moradores locais. Para estes, vale retocar o verso da Sinfonia Ressurreição de Mahler: “Oh, acredita, meu coração... nasceste em vão, sofreste em vão”.

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Destaques destes 25 anos na Sala São Paulo

1. Gravações

Maior feito da Osesp em gravações

  • Integral sinfonias, choros e Bachianas Villa-Lobos. Osesp, regência de Isaac Karatchevsky. CDs BIS, 2012.

Neschling colocou como seu primeiro objetivo gravar Villa-Lobos em condições técnicas e artísticas profissionais; e também editar suas partituras. Até então não se dispunha de gravações que observassem estes dois quesitos. A Editora da Osesp fez um trabalho caprichado de estabelecimento de uma partitura que hoje se pode considerar a ferramenta ideal para qualquer orquestra do planeta executar sua música em concerto ou mesmo gravá-la. Agora temos todas as sinfonias, os Choros e as Bachianas. As primeiras conduzidas por Isaac em estado de graça. E os Choros e Bachianas ficaram nas mãos competentes da dobradinha Neschling-Minczuk na primeira década deste século. Resultado: gravações de referência internacional. Maior feito da Osesp nestes 25 anos.

O melhor CD

  • “Sinfonia Alpina”, R. Strauss, Frank Shipway e Osesp, BIS, 2012

Se fosse preciso escolher uma performance de comparação do estágio que a Osesp atingiu no início de sua segunda década na Sala São Paulo, sem dúvida é esta gravação. Foi um momento iluminado dos músicos, e de um maestro excepcional, o britânico Frank Shipway, construtor de orquestras, capaz de lhes propiciar DNA próprio. Foi uma parceria rara. O melhor CD da Osesp nestes 25 anos.

A gravação mais original

  • “Villa-Lobos Choral Transcriptions”, Coro da Osesp, regência de Valentina Peleggi. Naxos, 2021.

Uma daquelas gemas escondidas que quando vêm à luz espantam pela beleza e simplicidade simultâneas. Sabemos todos que o coral é pilar fundamental na vida e na obra de Villa-Lobos. Mas não que ele fez uma série de transcrições para coro a cappella de peças muito conhecidas em seu formato original. Estão lá peças originais para piano, como uma Canção sem palavras, de Mendelssohn, prelúdios do Cravo Bem Temperado, de Bach, e Träumerei, de Robert Schumann, para piano, além da Serenata de Schubert, cantada em português. Requinte final: um arranjo maravilhoso da Bachiana nº 9. O álbum mais surpreendente destes 25 anos de vida musical da Sala São

2. Concertos

  • Heinz Holliger “Dos Canyons às Estrelas”, de Olivier Messiaen. Osesp, Heinz Holliger - 8/11/2019

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Cada concerto do oboísta, maestro e compositor suíço Heinz Holliger na Sala São Paulo – e eles foram muitos, na última década – foi um acontecimento raro, daqueles. Um deles, entretanto, destacou-se ainda mais. Aconteceu há cinco anos. A magia única da música de Olivier Messiaen, um dos mais originais e criativos compositores do século 20, transferiu-se para o palco da Sala São Paulo, naquela quinta-feira, 8 de novembro de 2019. Heinz Holliger conduziu os músicos da Osesp numa maravilhosa “viagem” sonora que começou nos cânions de Utah e transportou o público para os pássaros e as estrelas. Uma obra-prima de quase duas horas que jamais cansa, graças ao maestro e aos músicos da Osesp compartilhando aquele momento único em que a recriaram diante de nossos olhos e ouvidos.

  • Andras Schiff recital - 28/08/2012

Assisti a este recital ao lado do saudoso Olivier Toni. O pianista húngaro Andras Schiff tocou um programa conceitual raro, com as derradeiras sonatas de Haydn, Beethoven e Schubert. Edward Said as chamaria de perfeitas amostras do “late style”, ou estilo tardio, desses compositores. A encorpada, “sinfônica” sonata nº 62 de Haydn, composta em 1794, em Londres, quando ele conheceu de perto os robustos pianos ingleses, já anuncia o que seria a música do século 19; a opus 111 de Beethoven, de 1821, com sua incrível Arietta de 18 minutos, até hoje soa visionária; e a sonata D. 960, escrita por Schubert em setembro de 1828, dois meses antes de sua morte, apresenta uma genial canção sem palavras em seu imenso molto moderato inicial de mais de 18 minutos. Após a opus 111, ninguém conseguiu aplaudir de imediato, tamanha a sintonia fina entre palco e plateia.

  • “Gurrelieder”, de Schoenberg, Osesp, solistas, coro; regência de Isaac Karabtchevsky - 16/09/2015

Os que não leram nem ouviram nada sobre os “Gurrelieder” antes de tomarem seus assentos anteontem na Sala São Paulo, devem ter saído encantados com tão bela música e o aparato sensacional que cercou a performance, sobretudo no terço final dos 130 minutos, com jogos de luzes. O público urrou como no futebol, após o tonitroante acorde maciço de dó maior, com os 140 músicos da orquestra (incluindo 25 metais e quatro harpas), os 80 cantores dos três coros e os três solistas em cena. Nos 28 compassos finais, não há um só sustenido ou bemol -- reina um imenso, reluzente dó maior. Contracenando com uma multidão de instrumentistas, três corais e seis solistas, Isaac Karabtchevsky manteve o controle fino das alturas e intensidades.

  • Recital Nelson Freire Sala SP – 30/09/2016

Nelson abriu com três corais de Bach, dois transcritos por Busoni, outro por Myra Hess. Em seguida, fez da sonata no. 3 de Brahms, um mamute de 40 minutos, a obra central de um recital memorável. Aos 71 anos, o pianista reproduziu todo o fogo juvenil desta obra escrita por Brahms aos 20 anos. Na segunda parte, adoráveis fogos de artifício como só Nelson sabia reproduzir magicamente diante de nossos ouvidos nos encaminharam para uma obra final impactante e visionária. Primeiro, a encantadora “Children’s Corner” que Debussy compôs amorosamente – e com muito swing, incorporando os ritmos sincopados dos inícios do jazz que vinham do outro lado do Atlântico – para sua queridíssima filha, Chou-Chou, de 3 aninhos. Depois, uma das mais conhecidas e tocadas criações de Chopin, a Barcarola opus 60, antecedeu o Scherzo em si menor, opus 20, sua primeira obra de fôlego, de 1831.

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  • Gardiner e a mágica da música barroca vocal - 9/11/2019

Ele caiu em desgraça depois de dar um murro num de seus cantores que saiu pela porta errada após um concerto. Mas isso não o invalida como músico excepcional. Desde a curta “Jehova, quam multi sunt hostes mei”, de Purcell, peça de abertura do concerto de John Eliot Gardiner na Sala São Paulo, soou cristalino seu credo artístico: “Injetar paixão e expressividade na interpretação da música barroca vocal”. As 19 vozes incrivelmente homogêneas dos 19 integrantes do Coro Monteverdi pareciam integrar-se numa só e riquíssima voz. Ainda estudante, Gardiner se insurgia contra o anêmico “Bach sem humor” de Karl Richter. E dedicou sua vida a demonstrar – como o fez miraculosamente sábado, na Sala São Paulo – “a alegria e o espírito desta música tão impregnada de ritmos dançantes”, mesmo sacra.

Programação 25 anos da Sala São Paulo

Para celebrar os 25 anos de Sala São Paulo, a Osesp apresenta, entre quinta, 4, e terça, 9, o mesmo concerto que realizou quando inaugurou sua nova casa, em 9 de julho de 1999. A Sinfonia nº 2 – Ressurreição, de Mahler, foi composta entre 1888 e 1894 e teve sua versão final em 1910. “Grandiosa, com cerca de 80 minutos de duração e cinco movimentos, explora o tema da morte e da ressurreição e, como as demais sinfonias do compositor, é um elo entre a tradição romântica e as novas linguagens do século XX”, diz o site da Osesp. Confira a programação:

  • Qui., 4 de julho de 2024 - Horário: 20h30
  • Sex., 5 de julho de 2024 - Horário: 20h30
  • Sáb., 6 de julho de 2024 - Horário: 16h30
  • Ter., 9 de julho de 2024 - Horário: 20h00
  • Duração: 80 min.
  • Valor: R$ 39,60 a R$ 271,00 (Compre aqui)
Análise por João Marcos Coelho

Jornalista e crítico musical.

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