Duas lives feitas nos últimos dias mostraram os dois caminhos em que a nova modalidade de entretenimento de massa pode tomar. A primeira foi com Luiz Carlos, cantor do grupo Raça Negra, feita em sua casa, na tarde de terça (21), a partir das 17h30. A segunda, à noite, veio com os irmãos Sandy & Junior, também de um estúdio em suas casas, em Campinas, acompanhados por Lucas Lima, músico e marido de Sandy. O que houve nas duas transmissões ajuda a entender como um artista pode usar as lives, essa potência mobilizadora de alcance de audiência inédito, a favor e contra a própria reputação.
Luiz Carlos representa um dos mais vitoriosos coletivos do samba dos anos 1990, e por isso seu público merecia mais cuidado. O Raça Negra, para ficar em dois exemplos, colocou É Tarde Demais no Guinness depois de ter a canção como a música mais tocada em um único dia no mundo: um total de 600 vezes, em 20 de julho de 1995. Eles também reuniram 1,5 milhão de pessoas para um único show, em uma apresentação feita no Dia do Trabalho, em São Paulo. Um patrimônio considerável, com fãs que voltaram a encher suas fileiras desde que uma de suas músicas, Cheia de Manias, passou a fazer parte da trilha da novela A Dona do Pedaço, da Globo, em 2019. Mas Luiz, à parte das próprias conquistas, entregou à sua média de 1,4 milhão de internautas simultâneos uma live com muitos problemas.
As lives, por virem ao mundo como algo efêmero, doméstico, que se dilui no tempo e no espaço, não são levadas a sério como poderiam. O fato de os artistas estarem em suas casas, com suas famílias, reforça a ideia de que tudo pode, de que as pessoas querem vê-los errando, bebendo e desafinando. Há sim um prazer em vê-los descontraídos em seus próprios sofás, mas o fã quer, acima de tudo, aquilo que já é mais seu do que de quem canta, as músicas. Ninguém passa quatro horas em frente a um celular ou a um computador com interesse maior em algo que não seja ouvir os sucessos de seus artistas na magia do ao vivo, algo que coloca as lives, e não os arquivos do YouTube, no lugar dos shows.
O sambista Luiz Carlos tem carisma, repertório e história, mas se expôs cantando sobre uma base pré-gravada a situações que jogaram contra si. Seus próprios fãs levantavam dúvidas de forma não muito educada sobre sua sobriedade – cantar embriagado, como fez Bruno, da dupla com Marrone, é o pior desrespeito a um fã verdadeiro – e sua voz não conseguia se manter nas melodias sem sair da pista. Cantar é um ato físico, desgastante, que requer cuidados, e o álcool, se existia, cobrou cada gota em cada nota. A live durou um pouco mais de três horas, um tempo considerado curto para os padrões que estão sendo ditados pelos sertanejos. E o tempo dirá que será um erro sucumbir às lives maratonistas imposta pelos patrocinadores fabricantes de cerveja. Depois de terem suas marcas expostas por cinco horas seguidas para 2 milhões de pessoas, nunca mais pagarão para artistas que sugerirem 4h30.
Sandy & Junior atuaram em um outro registro de live. A que fizeram foi com música ao vivo, produzida com ajuda do carismático Lucas Lima, e com foco na arrecadação de donativos para ajudar no combate da pandemia. Junior começou ressaltando com muita ênfase que o principal intuito do encontro eram as doações. Uma fala que pode ser ouvida também na transversal. Assim como na coletiva para anunciar a turnê Nossa História, em 2018, ele faz ressalvas para dizer que a dupla não atua mais, fora momentos especiais. Os fãs não o diminuem por vê ao lado da irmã e nem ele parece se incomodar com isso, mas talvez sinta que uma carreira de vida própria fique cada vez mais distante depois das demonstrações de força que a natureza do encontro possui.
Havia descontração e limitação também, com Junior assumindo violões e solos que em geral não toca e Lucas indo para um piano para o qual, em geral, não vai. Mas tudo ainda na cota do doméstico que o meio permite à mensagem. A voz de Sandy era respeitosa e precisa, como nem sempre era a segunda voz de Junior. E aqui vai outra percepção do mercado das lives: as vozes. A tecnologia de captação de vozes, mesmo quando o artista tem um bom microfone em sua sala, não é a mesma do que a da TV. Ou seja, não há lugar mais cruel hoje com as vozes do que as lives. É ali que se percebe as fragilidades de quem canta e onde o incômodo dói mais a quem ouve. E nesse quesito, a maior voz de todas as lives até aqui, sem uma nota fora do lugar, mantendo seu timbre jovem e elástico, foi a de Roberto Carlos. Sua live do domingo, dia 19, mostrou uma magnífica forma conquistada não por exercícios físicos ou cuidados com líquidos gelados, mas sobretudo pela região que Roberto encontrou para colocar seu canto depois de ver João Gilberto. Uma veia jamais saltou em seu pescoço.
Aí vem o argumento que diz: “E quem está ligando? Afinal, era só uma live". Está certo. Sandy & Junior conseguiram levar os fãs para dentro de suas casas com carinho e respeito. A felicidade naquela família é algo arrebatador, com o pai Xororó de fã, roadie e fazendo participação especial em Evidências, que derrubou a internet e fez todo mundo cantar de novo. A notícia final é de um altruísmo impagável: em quase três horas ao vivo para até 2.448 milhões de pessoas assistindo ao mesmo tempo, foram arrecadados, com a ajuda da Fundação Casas Bahia, 1.200 toneladas de alimentos, algo que equivale a cinco milhões de pratos de comida. Mais um motivo para a live deixar de ser “apenas uma live” e se transformar, depois do álbum, do EP e dos shows, em um novo represamento artístico.
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