Nesta quinta-feira, 9 de novembro, completa-se um ano da morte de Gal Costa. De lá para cá, um filme, Meu Nome É Gal, e um livro que analisa a relação da cantora com o Tropicalismo, A Todo Vapor – O Tropicalismo Segundo Gal Costa, de Taissa Maia, foram lançados. No entanto, a obra fonográfica de Gal, seu principal legado e a legítima manifestação de seus desejos artísticos, continua estacionada.
Há material disponível. E muito. Sobretudo nos arquivos das gravadoras por onde Gal passou. O lançamento depende da autorização dos herdeiros da cantora (leia mais abaixo), em um espólio que ainda segue na fase de inventário de bens. O Estadão foi atrás de pistas do que pode chegar aos ouvidos dos fãs nos próximos anos – algumas faixas até já circulam pela internet. Uma história cheia de pontos nunca esclarecidos totalmente, como é de praxe na indústria fonográfica brasileira.
No final dos anos 1990, o produtor e pesquisador musical Marcelo Fróes foi convocado pela empresária Lea Millon (1930-2011) - a Tia Lea, citada por Jorge Ben Jor na música W/Brasil - para fazer um levantamento da obra de Gal, a quem ela empresariava à época, nos arquivos da gravadora RCA/BMG. A função de Fróes era identificar, sobretudo, faixas inéditas dos artistas. A intenção era colocar esse material no mercado.
Fróes encontrou muitos takes alternativos de músicas que a cantora registrou em seus discos de carreira. Era costume de Gal gravá-las em tons diferentes para depois escolher junto ao produtor quais seriam de fato lançadas. Ensaios também ficaram registrados nos arquivos da gravadora.
Dessa seara há, por exemplo, versões diferentes para canções como Lua de Mel (1987); Nua Ideia, Brilho de Beleza e Alguém Me Disse (1990); Solidão (1992); Nuvem Negra, Lavagem do Bonfim e Alkahool (1993); e Atrás da Porta (1995). Só de Errática, canção de Caetano Veloso que Gal lançou no álbum O Sorriso do Gato de Alice, há três takes distintos guardados.
Há também músicas inéditas, nunca lançadas na voz de Gal. Orquídea Negra, versão escrita por Ronaldo Bastos para Black Orchid, de Stevie Wonder, é uma delas. Há outra, de Caetano: Rio Negro, assinada em parceria com Vinicius Cantuária. A canção, gravada posteriormente por Cantuária, era candidata a entrar no disco Lua De Mel Como O Diabo Gosta, de 1987, e repetiria a dobradinha de compositores com os quais Gal alcançou êxito com a gravação de Sutis Diferenças, em 1983.
Em conversa com o Estadão, Cantuária, que fez parte da lendária Outra Banda da Terra, e com ela tocou com Caetano Veloso, contou como Rio Negro foi feita. “Estávamos em Manaus para fazer show – eu nasci lá. Caetano saiu para fazer um passeio pelo rio e, quando voltou, colocou esse poema por debaixo da porta do meu quarto”.
Cantuária afirma que não foi ele quem entregou Rio Negro para Gal, ao contrário do que havia feito com Sutis Diferenças anos antes. O músico diz que adora a gravação. “Acho linda. Podiam mixar e lançar. Gal está aí, a obra de um artista sempre fica”, diz ele, que tocou com Gal no disco Caras e Bocas e no show Com a Boca no Mundo, de 1977. Foi ele quem deu a ideia dos solos de guitarra em Tigresa, para diferenciar da gravação de Caetano.
“Com a Boca no Mundo foi um show muito atacado. Caetano aparecia sempre na plateia para defender a Gal”, relembra. No repertório havia outra música de Cantuária que Gal nunca gravou, Filhos das Índias, depois gravada por Elba Ramalho. Um registro sem plateia desse show está preservado.
A lista tem outras músicas nunca lançadas na voz da cantora: Ouça a Canção, parceria de Bernardo Vilhena e Lulu Santos; Fio de Areia, escrita por Zé Miguel Wisnik; Lá e Cá, de Lenine e Sérgio Natureza, lançada antes por Jane Duboc, o que fez Gal desistir de incluí-la em seu disco; e uma versão para Bim Bom, de um dos ídolos de Gal, João Gilberto.
Há ainda a obscura Berenice, composição bissexta da dramaturga Maria Carmem Barbosa para a trilha da peça Por Um Triz Não Sou Feliz, estrelada pela atriz Lucia Veríssimo em 1985. O arranjo foi feito pelo maestro Severino Filho, pai de Lucia, fundador do grupo Os Cariocas.
Em 1991, Gal gravou seis faixas com o acompanhamento do violonista Raphael Rabello (1962-1995). Os dois cogitaram fazer um disco juntos. Nesse material, há canções como Dora, Estrada Branca e Duas Contas.
Todas essas gravações inéditas fariam parte de um CD, inicialmente duplo e, posteriormente simples, que a BMG pretendia lançar. O álbum teria o nome de Talvez, canção que Djavan fez para Gal incluir no disco Gal, de 1992. O compositor não chegou a colocar letra na canção. A gravação que existe traz apenas o violão de Djavan e os vocalizes guiando a melodia.
Para esse projeto, a gravadora levou um caminhão para o estacionamento do depósito onde as fitas estavam armazenadas. Todas as faixas foram mixadas, mas jamais foram lançadas. Segundo Fróes, o projeto, que estava em fase inicial, não foi para frente.
“Logo depois, Gal saiu da BMG. Tia Lea me contou que no distrato do contrato estava previsto o lançamento desse CD de inéditas. Esse é um assunto que nunca consegui conversar lá dentro”, diz o produtor.
Fora do streaming
A gravadora Sony, que atualmente guarda os discos que Gal lançou na RCA/BMG, ainda não disponibilizou nas plataformas digitais o álbum Acústico MTV, um dos maiores sucessos da carreira da cantora. Também não incluiu álbuns como Bem Bom e Lua de Mel Como o Diabo Gosta. Sobre o Acústico MTV, lançado originalmente em 1997, a Sony diz que não possui mais os direitos da marca MTV e que segue em busca da autorização para colocar o álbum nos players de música.
O Estadão também questionou a gravadora sobre a ausência de outros trabalhos importantes de Gal nas plataformas digitais e sobre o projeto do CD Talvez. Recentemente, em uma entrevista à revista QUEM, André Pacheco, ex-executivo de marketing da gravadora, sugeriu que há problemas entre a Sony e Wilma Petrillo, ex-companheira de Gal.
A Sony respondeu que trabalha o catálogo de Gal com “o máximo respeito e carinho” e que está digitalizando vários outros títulos de seu acervo. “São materiais muito antigos, e o da Gal é um deles e, é, sem dúvida, uma prioridade para nós”, diz a nota.
A gravadora Universal (antiga Philips), que abrigou Gal entre 1967 e 1983, também guarda preciosidades. Como uma versão em espanhol do hit Baby. A cantora teria colocado voz na faixa entre os anos de 1971 e 1972. A gravação não foi aproveitada. Do mesmo período é um compacto duplo nunca lançado que traz as faixas A Morte (Gil), Eu Sou a Outra (Ricardo Galeno), Vale Quanto Pesa (Luiz Melodia) e O Dengo que a Nega Tem (Dorival Caymmi).
Ao Estadão, a Universal disse que está em andamento o relançamento de vários vinis “importantes e cultuados” de Gal para o próximo ano. A gravadora não citou, porém, nenhum projeto com faixas inéditas da cantora.
Gravações ao vivo: shows históricos e encontros com Tom Jobim
Gal Costa fez inúmeros shows que entraram para a história da música popular brasileira. E muitos deles foram gravados, em excelente qualidade sonora, mas nunca lançados. Índia, de 1973, é um deles. Com Dominguinhos na banda, Gal canta músicas como Presente Cotidiano, Maracatu Atômico e Desafinado.
Do ano seguinte, o show Cantar, com João Donato nos teclados e na direção musical, traz mais raridades na voz de Gal: Menina Mulher da Pele Preta, Não Existe Pecado ao Sul do Equador, Me Deixe Mudo e Drume Negrita. Com Donato, ela canta Chorou, Chorou, depois de uma deliciosa fala em que um entrega o apelido do outro: Sapo e Cebolinha é o músico. Rã, Papagaio Falador e Porquinho da Índia é Gal.
Esses dois registros pertencem a Universal, que também guarda o show Gal e Caymmi, com a participação também de Dorival Caymmi, de 1976, traz Gal cantando Viola, Meu Bem, tema tradicional presente no álbum Araçá Azul, de Caetano. Há também o registro do espetáculo Gal Tropical, de 1979, quando a cantora se tornou de fato uma estrela popular.
Fróes tentou usar o material no box com a obra da cantora lançado em 2010. Gal, segundo o produtor, chancelou o lançamento, mas a Universal disse que as faixas estavam reservadas para outros projetos e não autorizou a inclusão na caixa de CDs.
Com Tom Jobim, compositor com quem planejava lançar um disco, há a íntegra do show que fizeram juntos em Los Angeles em 1987 – a faixa Wave, do disco que trouxe parte do show, é a mais popular de Gal no Spotify. Além dessa, há uma apresentação que Tom e Gal fizeram no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro, em 1992.
Na gravadora Som Livre, agora pertencente a Sony Music, está preservada uma gravação de Dindi que une os dois artistas. O fonograma chegou a ser masterizado no ano 2000 para um disco que a gravadora lançaria com registro de Tom. O álbum nunca saiu. “O diretor artístico à época decidiu apostar em uma série de DVDs tributos”, conta Fróes.
Em 1994, Gal foi a estrela de um programa Som Brasil Especial, da TV Globo, apresentado direto do Vale do Anhangabaú, em São Paulo. A cantora recebeu nomes como Djavan, Rita Lee, Chico Buarque, Gilberto Gil e Olodum. Tudo gravado em estéreo, o que possibilitaria ser lançado com boa qualidade de som nos dias atuais.
Ao vivo, há muitos outros: a íntegra do show Plural apresentado no projeto Rio Show Festival (1991) e performances da cantora no Festival de Montreux, na Suíça.
Entretanto, qualquer lançamento que envolva o nome de Gal depende da autorização dos herdeiros da cantora, além dos músicos que participaram das gravações. A questão sobre Gal ainda está sub judice, em fase de inventário. Wilma Petrillo, que foi empresária e companheira de Gal, foi nomeada inventariante dos bens da artista em setembro de 2023. Gal deixou um filho, Gabriel, atualmente com 18 anos.
O Estadão perguntou a Wilma como ela pretende administrar o legado de Gal ou se ela autorizaria algum projeto com gravações inéditas, mas não obteve resposta.
Segundo Daniel Campello, advogado de direito autoral e CEO da ORB Music, a inventariante pode autorizar que uma gravação seja lançada, mesmo nessa fase de processo – assim como poderia consentir que um imóvel fosse alugado, por exemplo. A negociação teria que ser feita com as gravadoras que detêm os direitos fonográficos das obras deixadas por Gal. Alguns contratos podem carecer de revalidação; outros não.
Por ora, há apenas um lançamento confirmado: a última apresentação que Gal fez na vida, no Coala Festival, no dia 17 de setembro de 2022, menos de dois meses antes de sua morte. O álbum está masterizado e nas mãos da gravadora Biscoito Fino, na qual a cantora fez seus derradeiros álbuns de carreira.
De acordo com a Biscoito Fino, a íntegra do show tem previsão de lançamento para o primeiro trimestre de 2014. Apenas uma música, Tigresa, com a participação de Rubel e Tim Bernardes, foi lançada pelo selo Coala Records neste ano.
Músicas inéditas na voz de Gal Costa *
Compacto (1971/1972)
Baby (em espanhol)
Compacto duplo (1972)
A Morte
Eu Sou a Outra
Vale Quanto Pesa
O Dengo que a Nega Tem
Show Índia (1973)
Desafio
Maracatu Atômico
Show Cantar (1974)
Chorou, Chorou
Drume Negrita
Me Deixe Mudo
Menina Mulher da Pele Preta
Não Existe Pecado ao Sul do Equador
Show Gal e Caymmi (1976)
Viola Meu Bem
Você Já foi à Bahia?
Acontece Que Sou Baiano
Antibes Jazz Festival (1985)
O Amanhã
I Like You Very Much
Trilha do filme Jubiabá (1987)
Lindinalva
Show Plural no Rio Show Festival (1991)
Feitio de Oração
Mania de Você (versão inédita com Rita Lee)
Apresentação com João Donato (1993)
Nasci Para Bailar
Com Raphael Rabello (1995)
Duas Contas
Estrada Branca
Sobras de estúdio BMG (diversas datas)
Berenice
Bim Bom
Lá e Cá
Orquídea Negra
Ouça a Canção
Pela Luz dos Olhos Teus (com Djavan)
Rio Negro
* Segundo apuração do Estadão. Essa lista não leva em conta músicas que receberam gravações da cantora ou as quais a reportagem não teve acesso ou conseguiu checar se de fato existem
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