Sempre que o jazz colocou um novo ponto vermelho na linha do tempo, Wayne Shorter esteve lá. Sua onipresença como saxofonista dos grandes é inebriante. Nos anos 1950, esteve com o baterista Art Blakey e seu Jazz Messengers. Nos 60, integrou o segundo melhor time de Miles Davis, com o pianista Herbie Hancock, o baixista Ron Carter e o baterista Tony Willians. Nos 70, escreveu, com o tecladista austríaco Joe Zawinul, uma revolução de linguagem chamada Weather Report.
Hoje, aos 82 anos, Shorter se prepara para vir ao Brasil ao lado do pianista Herbie Hancock para um encontro único. A idade de Shorter e o alto preço de seus cachês tornam um revival desta noite quase improvável. Serão eles a cereja do brasiljazzfest, no próximo dia 30, na Sala São Paulo.
De sua casa, em Los Angeles, Shorter falou com o Estado sobre a carta aos jovens artistas que escreveu recentemente, disse sobre seus conceitos humanistas de jazz e deu sua versão sobre o polêmico episódio do álbum fracassado que não gravou com Elis Regina.
O senhor acaba de escrever, junto com Herbie Hancock, uma carta endereçada aos jovens artistas do mundo. Por que decidiu fazer isso agora?
É um alerta. Muitos jovens parecem ter uma visão limitada da vida, não conhecem o passado, não sabem de história. E, se você não conhece sua história, vai repeti-la sem saber. Certa vez, eu vi um programa em que jovens brasileiros não sabiam quem era Antonio Carlos Jobim. Seria como perguntar aqui nos Estados Unidos quem é Humphrey Bogart. Eu posso ouvi-los dizer algo como “o que é uma máquina de escrever?” (risos).
O senhor escreve na carta que, antes de ser um bom músico, é importante ser um bom ser humano. Por quê?
Se você não souber nada sobre humanidade, sua música vai sempre representar algo superficial. Ela será usada apenas para fazer dinheiro e divertir as pessoas. E minha pergunta é: para que servem as coisas da vida? Muitas pessoas pensam que são seres humanos simplesmente porque nasceram. Não, ainda não! Eu diria que o ser humano é resultado de um processo interno que faz da vida uma aventura, eternamente. É nisso que penso quando eu toco música.
O mundo parece estar pior hoje do que nos anos 60 ou 70. Há mais radicalismos ideológicos, dilemas sociais, ódios. Como conseguir inspiração?
Sabe que Herbie Hancock e eu ensinamos algumas vezes na UCLA (Universidade da Califórnia, Los Angeles). E uma pergunta que os alunos nos fazem frequentemente é: “No que vocês pensam quando escrevem ou tocam?” E eu respondo: bem, talvez você devesse pensar em como gostaria que o mundo fosse em algum futuro e tentar escrever sua música inspirado por esta ideia. Na música pop, os artistas não desejam garotas que eles não podem ter? Outros dizem: “Nós queremos aprender a improvisar como vocês”. Eles querem uma fórmula de improvisação, não sabem o que é a improvisação e estão na universidade.
O seu jazz é bastante introspectivo, o que o pode torná-lo às vezes exigente, difícil para algumas pessoas. Isso não cria barreiras com um público menos iniciado? O senhor não se preocupa com o fato de talvez não se comunicar com todas as pessoas?
Não, isso (o desafio) é uma benção, uma aventura. Eu não acho que sou maior ou mais sofisticado do que outros músicos. Herbie e eu nunca ensaiamos, apenas vamos para o palco, como eu gosto de dizer, com os nossos pijamas (risos). E nosso desafio é fazer com que nossa música soe como música. Um dia, Miles Davis me fez um pedido (ele imita a voz de Miles com uma semelhança impressionante): “Hey Wayne, você pode tocar música de um jeito que não soe como música? Você poderia tocar seu instrumento de uma forma como se você não soubesse tocá-lo?” Ele queria que eu tocasse como se fosse uma criança. Herbie e eu temos então o pensamento de Miles, de tornarmos a simplicidade mais profunda. Não a simplicidade do sentido superficial, como acontece na música pop (ele canta trechos de uma canção que inventa na hora). Gostou da minha pequena música pop? (risos). Nós precisamos de complexidade e de simplicidade, mas não de simplismos.
O senhor demonstra uma preocupação com o ego dos jovens artistas, dizendo como que eles podem ser prejudicados quando são contaminados por isso. Como evitar isso em uma carreira que qualquer um pode ser chamado de gênio logo na infância?
Eu senti isso também. E ouvi as pessoas se referirem sempre aos artistas como gênios, dizendo “Charlie Parker é gênio”, “Art Tatum é gênio”, “Antonio Carlos Jobim é gênio”, “Milton Nascimento, Elis Regina, são todos gênios”. “Bethoven é gênio, como ele lutou, como ele sofreu.” Então, se alguém me chama de gênio, eu simplesmente digo que sou um gênio tentando fazer algum dinheiro (risos).
Gênios parecem estar tão distantes das pessoas normais...
Você conhece o maestro (venezuelano) Gustavo Dudamel? Certa vez nós nos sentamos em uma mesma mesa, eu, ele, minha mulher, Herbie Hancock e o (aclamado autor de trilhas sonoras) John Williams. Dudamel perguntava se, quando acabassem com as formalidades, não poderíamos dançar. O lugar em que estávamos exibia na TV um show com Michael Jackson cantando Thriller e outras coisas. Gustavo e sua mulher começaram a dançar muito e John Williams também! São essas interações que precisávamos realizar mais entre os mundos. Elas tinham que acontecer entre artistas e público, estudantes e professores.
Como seguir sendo um músico criativo aos 82 anos de idade?
Engraçado que eu ainda me sinto como se tivesse 18 anos. Ok, 28 anos (risos).
O senhor tentou gravar um disco com Elis Regina e Cesar Camargo Mariano em 1981. Por que aquele projeto não deu certo?
Elis primeiro veio à minha casa, nos Estados Unidos, para ficar quatro ou seis semanas e me convidou para fazermos um álbum juntos. Depois, ela voltou ao Brasil e eu fui até ela para fazermos o projeto. Quando finalmente fomos preparar o disco, Elis desistiu da ideia. “Eu quero tirar umas férias, quero sair e pensar.” Ela colocou as mãos nos meu ombro (para falar isso) e senti que estava realmente muito emocionada. Pensei comigo: isso é algo muito particular. Eu fiquei na casa de Elis (na Joatinga, Rio) por uns dez dias e tivemos algumas ideias em conversar na varanda, mas ela desistiu. O meu empresário chegou a ligar dias depois e a perguntar se não íamos mais gravar, e ela respondeu que íamos gravar sim, mas mais tarde. Elis, não queria fazer nada naquele momento. Ela queria mudar sua vida, estava começando a praticar budismo.
Cesar Camargo conta que houve muitos problemas entre vocês, que o disco não seria de Elis, que aparentemente nem haveria voz no álbum.
Não... (fala lentamente). Em minha opinião, eu acho que havia muita emoção envolvida ali, algo muito particular entre marido e mulher (Cesar e Elis). Não era hora de fazer aquele disco. O elemento humano estava em jogo.
O senhor se arrependeu?
Não, porque o projeto não era o mais importante. O importante foi que nos encontramos e conversamos. Elis continua aqui, eternamente, ela continua viva. Sei que isso é o mais difícil de entender. Ela ainda não terminou, e nós vamos fazer nosso projeto no futuro.
Há algum conselho para um jovem músico que o senhor não colocou na carta?
Sim. Eles não devem fazer música para Deus, não devem fazer música para seus ídolos e nem pensando em arrumar o mundo. Não se esqueça de que as pessoas vão para a guerra cantando. Eles devem estudar a história de muitos povos e lugares e interagir sempre com o desconhecido. Os americanos não fazem muito isso.
Algum músico brasileiro com o qual ainda gostaria de gravar?
Sim, com o Hamilton de Holanda, do bandolim (ele imita o som do bandolim).
É possível traçar o perfil psicológico de um músico apenas vendo-o tocar o seu instrumento?
Miles Davis costumava observar a forma como seus músicos andavam para saber mais sobre eles. Ele podia dizer se alguém tinha algum potencial apenas analisando como a pessoa se movia. Ele me observou e acho que gostou.
Menos estrelas e mais frescor na escalação do festival
Crise pode gerar um efeito colateral positivo em festivais: nomes de cachês menores terão chance de vir ao País
A crise, acredite, pode render momentos sublimes. Apesar de reunir em um mesmo palco os estelares Herbie Hancock ao piano e Wayne Shorter no sax, que, em 1970, estiveram ao lado de Miles Davis, a 31ª edição do festival braziljazzfest (antigo Free Jazz, antigo Tim Festival e que hoje não conta com patrocinadores no nome) é reflexo de um bem colateral que a música sente em anos de cachês menores. Quem ganha é o músico da divisão intermediária e o público interessado em frescor.
Depois do primeiro show do dia 30 de março, com Hancock e Shorter, o palco será do quinteto instrumental Kneebody e o produtor Daedelus (Alfred Darlington), dia 2 de abril. “Tenho certeza de que acontecerá com eles o que aconteceu com artistas que mostramos primeiro no festival, como Esperanza Spalding, Trombone Shorty e Snarky Puppy”, diz o pesquisador Zuza Homem de Mello, que participou da curadoria e agora aponta o faro muitas vezes certeiro nas escalações de outros anos. O grupo Kneebody foi formado em 2001 por estudantes da Eastman School of Music, uma origem acadêmica parecida com a sensação Snarky Puppy.
No mesmo dia, o tunisiano alaudista Anouar Brahem vai trazer o jazz do norte da África com as escalas árabes tradicionais de sua região, acompanhado por um trio de clarone, baixo e percussão. Sua ficha inclui parcerias com o baixista Dave Holland (que acompanhou no disco Thimar, de 1997) e com o saxofonista norueguês Jan Garbarek.
O baterista e compositor Antonio Sanchez, que acaba de ganhar um Grammy pela trilha sonora (apenas com solos de bateria) do filme Birdman se apresenta com o grupo Migration nos dias 1º de abril, no Auditório Ibirapuera, e em 3 de abril, na parte externa do mesmo auditório, com a abertura feita com a exibição de Birdman, do diretor mexicano Alejandro Iñárritu.
BRAZIL JAZZFEST. Vários locais. De 30 de março a 3 de abril. Programação completa e preços no site brasiljazz fest.com.br
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