NOVA YORK — No início de março, o trompetista e compositor Wynton Marsalis ficou confinado por causa da pandemia, mas com uma ideia preconcebida de tudo o que poderia realizar nesse período. “Achei que iria ensaiar muito, comer menos e compor muita música”, disse ele.
Mas como diretor administrativo e artístico do Jazz at Lincoln Center, Marsalis tinha uma instituição de arte para manter viva. Então, em 1º de abril, seu pai, o professor e pianista de jazz Ellis Marsalis Jr., morreu por complicações decorrentes da covid-19.
E assim, Marsalis entrou num ritmo acelerado - auxiliando no desenvolvimento do conteúdo online do Jazz at Lincoln Center, com o bate-papo semanal no YouTube Skains’s Domain, colaborações orquestrais, como o Quarantine Blues e até uma edição virtual do concurso de bandas de jazz estudantis, Essentially Ellington. Ele fez também um tributo comovente para seu pai e um vigoroso comunicado sobre segregação e o assassinato de George Floyd, e tem planos para lançar um novo álbum, The Ever Fonky Lowdown em breve. “Tem a ver com toda essa azáfama que toma conta das pessoas negras e brancas”, disse ele.
- 1 – Jazz como uma metáfora da democracia
O primeiro conceito de liberdade individual é a improvisação. Damos a você mais crédito por improvisar segundo sua própria perspectiva e não imitar ou ser parte de algum plano. O segundo é o swing, que é o oposto da improvisação. Significa que você é desafiado a se integrar, encontrar um equilíbrio com outras pessoas, e se equilibrar no tempo delas. Mas a diferença é que praticamos a democracia à maneira estabelecida por um amontoado de grupos que age por interesse próprio, lutando pela supremacia. Na nossa música o objetivo é manter seu interesse próprio, mas compreender que é o ímpeto do grupo que tem de ser do seu próprio interesse. É como se fôssemos realmente desafiados a tornar a vida mais fácil para nossos vizinhos e para as pessoas que não são como nós, do mesmo modo que o baterista tem de tocar junto com o baixista e não dizer “bem, eu toco mais alto. Deixe ver como tocar em cima do baixista ou fazer com que ele toque no meu tempo”.
- 2 – O Blues
A forma fundamental em toda a música americana - é isso que o blues é. Ele está em toda a música folclórica, no gospel, no som do banjo ou no som da guitarra. Está no som do ragtime, das marchas de John Philip Souza. O blues também é chamado e responde, o que é uma forma democrática. Geralmente suas letras descrevem algo trágico ou triste. Mas muitas vezes é o contrário e ele transmite otimismo. O interessante no caso do Quarantine Blues é que todos compuseram e todos arranjaram. E todos nós escrevemos coisas diferentes. Não há uma emoção única inserida nele.
- 3 – Bate-papos do “Skain’s Domain”
Nós nos reinventamos online. A ideia do Skains’s Domain surgiu da experiência de contar histórias e manter nossa comunidade conectada. E para mim é uma chance de responder perguntas que muitas pessoas têm feito. Veja, eu sempre me encontro com as pessoas depois de cada concerto. Procuro ser o último a sair da sala e faço isto há 40 anos. Pessoas de todas as idades assistem ao programa e procuro ser tão autêntico em conversar diretamente com elas como se estivéssemos ao vivo.
- 4 – Seu pai
Às vezes você tem uma relação muito boa com um dos seus pais e não é algo que consegue explicar. Para mim foi mais profundo do que amor, um interesse e uma identificação. Meu pai era uma pessoa realmente gentil. Mais intelectual. Ele deu aulas para muita gente, adorava seus alunos e era adorado por muitos. Uma alma boa e um grande coração. Era um humanista, assim sempre teve uma visão mais abrangente das coisas. E ficava feliz com os que faziam grandes coisas. Não importava quem fosse. Poderia ser eu, Terence Blanchard, Donald Harrison, Harry Connick Jr. Todos têm uma relação diferente com aqueles cuja morte se lamenta. A única coisa que eu diria para as pessoas é serem pacientes e tentar encarar seus sentimentos sem julgamentos. Meu pai sempre dizia, “Meu caro, não ache que você tem de sentir alguma coisa de qualquer maneira. Ele aceitou esta vida como ela é”.
- 5 – Justiça para George Floyd
Em meu depoimento, escrevi que é mais difícil atrair uma multidão todos os dias para clamar contra formas aceitas e sancionadas de corrupção e o desrespeito aos americanos negros que vimos em incontáveis vídeos e gravações - e ainda mais poderosamente mencionados na forma de leis, práticas e procedimentos discriminatórios que resultam em práticas de emprego e habitação injustas e, mais tragicamente, sentenças de prisão longas e injustificadas. Devia dizer isso até de morte. Assim procurei resumir como me sinto a respeito de tudo. Como sempre senti e sempre falei. No caso desta morte específica, há coisas que podemos fazer para corrigir isso. E estamos fazendo? A Suprema Corte acabou de emitir julgamento sobre discriminação e sexualidade das pessoas. Concordo com isto plenamente. Imunidade qualificada é um dos elementos vitais da violência policial. E ela decidiu não se manifestar. Deixou para as autoridades locais. A Suprema Corte deste país simbolicamente precisa dizer: “vamos acabar com isto”.
- 6 – A beleza do Jazz
Duke Ellington é sobre a maneira como se vestia e falava. Ele cresceu na era do menestrel, no estilo de Stepin Fetchit. Era o oposto disso. Louis Armstrong, cujo brilho de sua genialidade ensinou o mundo inteiro como tocar e refutou os estereótipos da pessoa negra em sua época. Benny Goodman colocou sua vida em risco para se apresentar em uma banda integrada em 1936. Dave Brubeck teve a primeira banda integrada no Exército americano. Estou lhe dando alguns exemplos. Existem muitos mais.
- 7 – Essentially Ellington
Estou orgulhoso de todos meus alunos, dirigentes, das pessoas que tocam nesse programa. Neste ano, tivemos 25 Anos, 25 Solos, e foi excelente ouvir, através do tempo, como os garotos vêm tocando. Para mim, é uma honra todos os anos trabalhar com os juízes, ouvir os garotos tocarem e participar de seu desenvolvimento.
- 8 – Soluções reais
Constituímos uma voz coletiva em torno de interesses, mas a propaganda interfere em nosso real desejo. Precisamos nos concentrar, de um ponto de vista das comunidades, em temas essenciais. Um deles é a redução de nossa infraestrutura econômica. E se considerássemos usar nossa inteligência para alcançarmos isto? Quanto tempo levará para criarmos algo? Imagine como seria ter uma assistência médica universal que não esteja relacionada com o emprego das pessoas? E quanto à educação? Precisamos de grandes soluções para os problemas que farão de nós uma grande nação. E é impressionante como um país com esta riqueza pode ser tão mesquinho quando se trata de investir na área social da sua civilização e cultura. Esses são elementos fundamentais da vida.
- 9 – Frederick Douglass e William Butler Yeats
Acabei de ler Frederick Douglass: Prophet of Freedom de David Blight. É um livro fantástico. Eu e meu pai estávamos lendo juntos. Pedi a ele para me contar o fim da história. Mas ele disse que não. Na verdade, eu me encontrei com David Blight e adorei ter a chance de me sentar com ele e conversar sobre a vida de Frederick Douglass e a década de 1850 que ele expôs com tanta clareza (no livro). E William Butler Yeats. É o meu preferido. Tenho lido seus poemas há anos. Leio na estrada. Quando pego um ônibus. Sua visão de mundo é muito similar à de meu pai, muito fundamentada numa perspectiva espiritual, oriental. Rumo a Bizâncio é um bom poema para estes tempos. “Um homem de idade é algo sem valor. Um casaco esfarrapado em cima de um bastão”. Yeats transcende.
- 10 – Meus colegas
Foi uma bênção trabalhar com meu pessoal. Não posso dizer outra coisa. O que aprendi a respeito deles e sua disposição para progredir. Diariamente temos uma reunião da diretoria. Duas vezes por semana, há um encontro com os funcionários e uma vez por semana com a orquestra. A maneira como todos trabalham tem sido uma das coisas mais edificantes e inspiradoras para mim. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO
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