A vida levou Jessé Gomes da Silva Filho até onde ele jamais imaginou. O jovem compositor magérrimo que há 40 anos e quatro meses teve que ser empurrado para cima de um palco (no Asa Branca, extinta casa da Lapa carioca) para cantar ao lado de Beth Carvalho, é hoje cantor, ídolo popular e símbolo de brasilidade e alegria.
Consagrado nacionalmente como unanimidade - imune até mesmo às recentes polarizações políticas -, em 4 de fevereiro, Zeca Pagodinho vai comemorar 65 anos no palco, no estádio Nilton Santos, no Rio de Janeiro, com um show histórico coalhado de convidados especiais: Alcione, Jorge Aragão, Xande de Pilares, Diogo Nogueira, Seu Jorge, Marcelo D2 e Djonga. Em 22 de junho, ele inicia uma turnê nacional se apresentando no Espaço Unimed (antigo Espaço das Américas), em São Paulo (veja mais datas abaixo).
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“65 anos... Pesado, hein?”, comenta o sambista, no começo da segunda entrevista do dia, em seu bar (Bar do Zeca Pagodinho) no shopping Vogue Square, na Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro. Numa quarta-feira em que os termômetros cariocas registraram sensação térmica de 59,5ºC, até mesmo o humor de Zeca Pagodinho pode ser afetado. Mas não por muito tempo. Como ele lembra, seu pai, Jessé da Silva, morreu aos 87 anos, em 2015, e a mãe, Irinéia da Silva, dona Néia, no ano passado, aos 92 anos, dormindo. “Velhos e bebendo”, pontua Zeca.
Diabético e com exames em dia, saúde sob controle, ele desconversa ao falar do tamanho de sua bandejinha de remédios no café da manhã, mas aproxima o celular do braço para mostrar que costuma dar um confere na glicemia. “Problemas de saúde todo mundo tem. Eu não quero saber de porr* nenhuma, não. Só vivo.”
Por essas e outras é que a turnê Zeca Pagodinho 40 anos prevê datas espaçadas por Florianópolis, Campinas, Curitiba, Porto Alegre, Brasília, Salvador e Recife. Com cuidado para o artista não tomar tempo demais do avô.
Eu quero viver, cara. Vou pra seis netos este ano. Tenho quatro, vão vir mais dois. Eu quero ficar com eles, quero viver a minha vida.
Zeca Pagodinho
Vô Zeca curte brincar com os netos, seja na cobertura onde mora, na Barra da Tijuca, em que recentemente reformou a piscina, ou em seu refúgio, o sítio em Xerém, distrito de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. “Adoro botar o colchonete na sala e ficar deitado com os pequenos. Brincando, vendo televisão. Minha onda é essa.”
Recentemente, Zeca participou da animação Mundo Bita, em convite intermediado pelo bandolinista Hamilton de Holanda. “Eu gravei, levei meu neto e achei legal, mas não assisto a esse desenho. Prefiro Tom & Jerry, Pica-pau. Pô, queria tanto que voltasse o Chaves...”, comenta.
“É só dizerem que eu não tenho nada que fazer aqui no Rio (em compromissos profissionais), que eu vou embora para Xerém. É um lugar bom, as pessoas são humildes. Xerém me lembra muito aquela música do Chico Buarque, Gente Humilde - tema do violinista Garoto (1915-1955) letrado postumamente por Vinicius de Moraes, com contribuição de Chico -, todo mundo se ajuda”, diz.
“A gente tem que ajudar os outros, senão não tem graça a vida. Na outra semana, meu filho ligou e disse: ‘Um cara mandou 50 cestas aí de comida... E eu: ‘Pra quê, cara?!’. Não deu outra, veio a chuva no fim de semana agora, uma porrada de gente perdeu coisas”, completa.
Em 2013, durante uma enchente, Zeca teve uma atuação famosa na assistência à população local. Mas as chuvas fortes que mataram 12 pessoas na área metropolitana do Rio na semana passada não afetaram tanto o distrito. “Fizeram uma obra bem bacana lá, Xerém hoje é um luxo, comparado com o que era.” O calor, porém, piorou.
“É o cão. Antigamente, tinha mais mato, era rua de lama, agora é tudo asfalto. Tem condomínio para caramba. Progresso, né? Em dias como o de hoje, eu fico só no ar condicionado”. Carregando garrafinha de água mineral para se hidratar? “Não, que é isso!? Lá é água da bica. Xerém é outro papo. Não dá pra ficar sem ir lá”, diz Zeca.
A vida de Zeca na Barra da Tijuca tem elementos do personagem do sucesso Burguesinha, de Seu Jorge. “Aqui no Rio está a minha música, a gravadora, o meu salão... Minha mulher fala que eu faço uma unha por dia. Faço mão e pé. Cabelo. Eu sou f*da, rapaz! Não fico três dias sem ir lá... Tem uma foto minha lá, tipo funcionário do mês.”
No meio da entrevista, ele faz uma ligação e se derrete ao telefone: “Amor da minha vida, amanhã eu sou o primeiro: pé, mão, esfoliação, pra tu bater a tua meta. Depois a gente vai almoçar e tomar um vinho. Depois você vai voltar pra trabalhar tirando bife da mão de todo mundo (risos)”.
Artista x compositor
Zeca Pagodinho sabe brincar. Chama um funcionário do bar e pede que ele cante. Josué Corán, venezuelano, 28 anos, canta Deixa a vida me levar (Serginho Meriti e Eri do Cais) com forte sotaque espanhol e, atendendo a mais pedidos do patrão, dá uma “sambadita”. “Bota na entrevista, temos que fazer uma campanha pra ele conseguir trazer a mãe dele lá da Venezuela”, pede o cantor.
Ele costuma dizer que “o artista engoliu o compositor”. Mas a fonte não secou. Acabou de mandar uma música para Alcione, e tem pego letras antigas e enviado para parceiros como Moacyr Luz. “Mas tem dia que eu não quero nem falar de compositor. Você entra no táxi e o cara vem com ‘deixa a vida me levar, vida leva eu’. Ah, mermão, pelamor de Deus, bota Waldick Soriano, bota qualquer coisa.”
Para quem é tido e amado nacionalmente como símbolo da simpatia e do bom-humor, o assédio dos fãs e pedidos para tirar selfies podem ser um desafio. “Eu sou simpático mesmo. Mas não para chato e gente abusada. As pessoas perderam a noção, querem tirar foto até com defunto. Fui no velório do meu cavaquinista, Paulinho Galeto, e queriam que eu fosse na capela ao lado, porque o defunto era meu fã... Não, não vou não”.
Fui visitar meu pai na UTI, a mulher pediu pra tirar uma foto comigo e falou: ‘Dá um sorriso’. Eu disse: ‘tô numa UTI, né? Vou rir de quê?’ Tem um bocado de gente que se incomoda com isso, mas não fala com medo de ser criticado depois.
Zeca Pagodinho
Para Zeca, a pandemia afetou o espírito do brasileiro: “Perdi alguns amigos. Muita gente ficou com medo de tudo. Mais cansada...”. A polarização da sociedade, a ruptura entre familiares por causa de diferenças políticas, também o deixa inconformado. “Tenho amigos que acabaram a amizade por causa disso. Coisa babaca, né? Cada um é o que é...”.
Eu não falo de política e na minha casa não se pode falar (de política). Mando logo um ‘vamos parar esse assunto!’. O assunto aqui é beber, cantar samba, contar história.
Zeca Pagodinho
No clã do Zeca, religião também não gera discussão. “Minha mulher é evangélica, eu sou macumbeiro. Vou na igreja com ela, sou católico também. Sou de Deus. E de vez em quando tenho que ir lá nos mais velhos, fazer umas coisinhas.”
Zeca tem seus momentos místicos, mas garante que não tem medo de morrer. “Tenho pena! Gosto tanto desse mundo! Gosto tanto das bebidas, das músicas, da vida, da alegria! Fico olhando essas imagens aqui do bar, quanta coisa boa já passei. Não é por acaso que, por onde passo, tem gente sorrindo”.
Em plena forma
Zeca está chegando aos 65 anos “em plena forma”, segundo Paulão Sete Cordas, diretor musical de sua banda. “Ele está bem animado. E motivado, que é o mais importante. O Zeca sempre sabe se ajeitar, mesmo quando surgem circunstâncias adversas”, comenta o músico, lembrando as gravações do Acústico MTV 2 — Gafieira, em 2006, filmado em meio a uma crise de coluna que obrigou o cantor a ser operado logo em seguida.
Há 36 anos com Zeca - ele e os percussionistas Marcos Esguleba e Ura o acompanham desde os primórdios -, Paulão só não tocou no primeiro disco em que ele participou, a coletânea pau-de-sebo Raça Brasileira, de 1985, que também apresentava ao Brasil Jovelina Pérola Negra, Elaine Machado, Pedrinho da Flor e Mauro Diniz.
“Só fiquei fora desse porque tinha acertado de fazer, ao lado do Mauro Diniz, a direção musical de um show do Monarco com o Carlinhos Vergueiro em São Paulo. Como o Mauro foi convidado para fazer o disco também, alguém precisava tomar conta do Monarco em São Paulo”, lembra Paulão.
Ele conta que ainda está “trocando figurinhas” com Pretinho da Serrinha para acertar o repertório final da turnê de Zeca, que deve incluir 26 músicas. “Estamos falando de sambas com imenso valor afetivo. É muito difícil escolher entre tantas coisas bacanas, de tantos álbuns, sem ter que recorrer a medleys.”
Entre as canções resgatadas devem estar clássicos que Zeca não canta há muito tempo, como Pisa como eu pisei (de Beto Sem Braço e Aluísio Machado, gravado em Jeito Moleque, de 1988) e pérolas divertidas e cultuadas pelos fãs como Vacilão (do álbum Água da Minha Sede), de Zé Roberto, e Exaustino (Roberto Lopes, Canário e Nilo Penetra).
O maestro Rildo Hora, nome fundamental da carreira de Zeca, vai participar como instrumentista, para reviver Judia de Mim (de Wilson Moreira e Zeca), do disco de estreia do cantor, Zeca Pagodinho, de 1986.
Os ensaios começam na segunda-feira, 22 de janeiro, no estúdio da Companhia dos Técnicos, no Rio de Janeiro, e surpresas podem surgir também nos arranjos. “No ensaio todo mundo dá palpite. Quando vai tocar de novo, já surge alguma coisa, e a gente aproveita as ideias”, conta Paulão.
Datas da turnê 40 anos
- 04/02 - Rio de Janeiro/RJ - Estádio Nilton Santos - Engenhão (gravação de DVD)
- 22/06 - São Paulo/SP
- 13/07 - Florianópolis/SC
- 27/07 - Campinas/SP
- 24/08 - Curitiba/PR
- 31/08 - Porto Alegre/RS
- 14/09 - Brasília/DF
- 05/10 - Salvador/BA
- 30/11 - Recife/PE
- 06/12 a 09/12 - Navio Zeca Pagodinho - 40 Anos
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