“Deus Criador, pedi-te porventura / Que do meu barro me fizesses homem? / Pedi-te que das trevas me tirasses, / Ou me pusesses em jardim tão belo?”, indaga John Milton no poema épico Paraíso Perdido (1667). Esse embate entre criador e criatura é um tema recorrente na literatura, fartamente explorado por Mary Shelley e seu marido Percy Bysshe Shelley, autores de Frankenstein (1818) e Prometeu Libertado (1820).
Se, no século 19, a ficção especulativa já se preocupava com essa questão ética da gênese de um ser pelas mãos humanas, o século 21 testemunha essa perspectiva cada vez mais plausível com a crescente robotização do trabalho e a hegemonia da inteligência artificial. Hoje, algoritmos gerenciam desde tarefas banais até as notícias que você deve ou não ler. Nós somos o Dr. Frankenstein – o criador –, mas a criatura da vez – os robôs – nos superam a cada dia desde que o computador Deep Blue venceu a lenda do xadrez Garry Kasparov em 1997. Essa noção do Prometeu Moderno (esse é o título alternativo do livro de Mary Shelley) embala a filosofia por trás de Blade Runner 2049, que estreia nesta quinta-feira, 5, dirigido por Denis Villeneuve.
Leia mais: 'Blade Runner' político? Entenda como robôs influenciam as eleições no Brasil
“O que você sentiria, depois de pensar que era homem, se um belo dia acordasse e descobrisse que tinha virado robô?”, provoca Isaac Asimov na introdução do conto A Formiga Elétrica, escrito por Philip K. Dick em 1969. É de Dick a obra que melhor explora a temática do Prometeu Moderno aplicada aos robôs na ficção científica: Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968), que deu origem ao primeiro Blade Runner (1982), retorna às livrarias pela editora Aleph em uma belíssima capa dura, com direito a ilustrações de dez artistas brasileiros e estrangeiros, um ensaio de Rodrigo Fresán e outro de Douglas Kellner e Steven Best.
No livro, o caçador de androides Rick Deckard recebe a ingrata missão de “aposentar” seis replicantes (no filme, quatro) e apaixona-se por Rachael, que não sabe de sua condição robótica. Como os detetives noir, Deckard fica em um meio termo ambíguo, mas dessa vez entre pessoas desumanizadas e robôs carismáticos. Antes intolerante, Deckard se coloca no lugar dos replicantes e questiona a ética de seu trabalho. Sua crise de identidade chega ao ponto de, no livro, ele se submeter ao Teste de Empatia Voigt-Kampff para tirar a dúvida quanto à sua natureza. Mais adiante, sem saber se uma aranha é orgânica, conclui: “isso não importa. As coisas elétricas também têm suas vidas.”
Alguns temas são explorados no livro, mas não no filme: os efeitos da radiação se mostram cruéis com os humanos; o "bagulho" se acumula por todo lado; as pessoas simulam emoções por meio de um dispositivo; não ter um animal é visto com maus olhos pela sociedade – Deckard compra uma ovelha elétrica para manter as aparências, afinal um bicho de carne e osso não caberia em seu orçamento de caçador de androides. Dick teria muito a dizer sobre a explosão dos pet shops na última década. Como o livro se passa em 2019, a sociedade ainda tem dois anos para sucumbir à distopia, o que não parece tão surreal tendo em vista o noticiário político internacional e as farpas trocadas entre Coreia do Norte e EUA.
Ridley Scott, diretor da adaptação de Androides Sonham com Ovelhas Elétricas e produtor de sua sequência, queria batizá-la de Android ou Dangerous Days na época. Foi um dos roteiristas, Hampton Fancher (que também fez o roteiro do filme de Villeneuve com Michael Green), quem sugeriu o nome por causa do livro de Alan Nourse, The Bladerunner (1974), que inspirou uma ficção de mesmo nome do autor da geração beat William S. Burroughs. O romance conta a história de um contrabandista de equipamentos médicos em uma sociedade na qual os tratamentos são proibidos para quem não se submete às leis da eugenia (base pseudocientífica do nazismo). Talvez a uniformização eugênica explique, no filme de Scott, por que – ainda que haja um vasto multiculturalismo na ambientação – os humanos sejam robóticos e demonstrem menos emoções que os replicantes, coloridos e animados.
Se hoje o Blade Runner tem status cult, esse reconhecimento custou a chegar. A bilheteria quase não pagou o investimento de US$ 28 milhões e as resenhas foram pouco amigáveis. Janet Maslin opinou no jornal The New York Times que o filme era “uma bagunça em termos narrativos” e, na revista The New Yorker, a crítica Pauline Kael arrematou: “Se alguém aparecer com um teste para detectar humanos, talvez Ridley Scott e seus associados devessem se esconder.”
A fotografia característica de Blade Runner e mantida na sequência, deve muito à iluminação dos filmes de Josef von Sternberg; a ambientação, ao mesmo tempo retrô e futurista, bebe da fonte de Metropolis (1927), de Fritz Lang; e os cenários “neon noir” recheados de art déco são quase um personagem do longa, definindo boa parte de sua aura. A chuva ácida e a onipresente poeira (o “bagulho” e a radiação, no livro de Dick) é uma resposta ao futuro asséptico de Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke em 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968).
O fabricante de robôs Eldon Rosen aparece em apenas uma cena de Androides Sonham com Ovelhas Elétricas, mas Eldon Tyrell, no filme, reproduz com o replicante Roy Batty o encontro entre criador e criatura de Frankenstein e dos versos de John Milton. Assim como em 2001 (e em 1997, na vida real), homem e máquina jogam xadrez. No filme de Kubrick, HAL 9000 apresenta seu primeiro defeito ao analisar erroneamente a jogada de Poole; em Blade Runner, Roy vence Tyrell e, em seguida, o mata. O robô, que, como no poema de Milton, não pediu que do ferro Tyrell o fizesse homem, supera seu criador para alcançar a dimensão humana.
Segundo o filósofo alemão Jürgen Habermas, a clonagem atenta contra a autocompreensão dos humanos como seres livres e autônomos, minando a noção de simetria entre as pessoas. Que responsabilidade tem um clone? Nesse sentido, a criação de um replicante teria as mesmas implicações. A inteligência artificial, que já domina boa parte de nossa vida, desenvolverá consciência em algum momento? Se não admitirmos a humanidade de Roy, seria Tyrell um suicida? Se um robô mata um humano (ferindo a primeira das três leis da robótica postuladas por Asimov), o caso deve ser tratado como assassinato? Ou mero acidente? Como imputar culpa a um ser artificial? Desligar um robô é um crime contra a vida? As interrogações não cessam...
Philip K. Dick nos colocou há quase meio século questões que ainda não foram (e não serão tão cedo) respondidas pelo direito, tampouco pela filosofia. Pense nisso na próxima vez em que um site perguntar sem pudor: “Você é um robô?”
Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? Autor: Philip K. DickTradução: Ronaldo BressaneEditora: Aleph 336 páginas R$ 79,90
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.