Desde a adolescência eu notava que os espaços dedicados à discussão de cultura pop e cultura nerd na web tinham problemas com a presença de mulheres. Ser mulher nesses lugares significava que você jamais seria tratada normalmente - ou os rapazes colocavam-nos num pedestal ou eram francamente misóginos. A frase típica, aliás, pra uma moça que chega em alguns espaços como esses, é “tits or GTFO”, algo como (mostre os) peitos ou dê o fora. Mas eu cresci sem entender os porquês disso e só me mantive longe desses lugares até a vida adulta. Ninguém quer participar de um lugar no qual não é bem-vindo.
Há pouco mais de quatro anos, voltei a esses espaços brevemente durante uma pesquisa para escrever sobre o 4chan, o maior fórum anônimo na web do mundo, para o caderno Link, do Estadão. Descobri versões brasileiras desse tipo de espaço - os chamados chans - e escrevi um pequeno texto ressaltando como eram ali que surgiam alguns dos grandes memes brasileiros. Foi o suficiente para que os anões - é como os anônimos se chamam - fizessem ameaças de estupro, morte e agressão, montagens ofensivas com minhas fotos e descobrissem e divulgassem meu endereço residencial. Detalhe: o repórter Fred Leal, então responsável por 95% da reportagem publicada no caderno, não foi sequer mencionado por eles na ocasião.
Passei muito tempo intrigada sobre os motivos pelos quais espaços frequentados por meninos curiosos e mais bem informados e cultos que a média pareciam ser muito mais avessos às mulheres do que essa média. Como eles, eu me sentia uma pária na adolescência, com meus gostos fora do comum e uma curiosidade além do normal por séries, filmes, livros, teorias da conspiração. Isso não parecia ser suficiente para que eles me considerassem uma igual, e cresci achando curioso que meninos que eram vistos como esquisitos pelo resto não notassem que eles estavam fazendo comigo o mesmo que sofriam.
Depois de adulta, acabei lendo relatos de mulheres e homens que também observaram, com certa perplexidade, uma misoginia acima da média nos espaços nerds. No começo de fevereiro conversei com moderadores de fóruns de cultura pop, nerds, mulheres que jogam videogame e psicólogos e escrevi um texto sobre como uma sociedade inerentemente machista em todas as esferas, até na cultura pop, pode estar fazendo com que muitos jovens tímidos e socialmente inaptos culpem as mulheres por seus problemas de sociabilização e se tornem misóginos. Na internet, especialmente em espaços anônimos, nos quais a sensação de “ninguém está vendo” é maior, descobri que esse ódio é alimentado por outros jovens que se sentem da mesma forma e também por grupos misóginos, racistas, homofóbicos, classistas e antissemitas que veem ali um espaço seguro para veicular ódio e doutrinar jovens.
Eu imaginava que os anões ficariam irritados com a reportagem, no mínimo - afinal, em 2011 eu estava até elogiando a criatividade deles e, mesmo assim, fui atacada. Tomei o cuidado de fechar meus perfis no Facebook, Twitter e Instagram. Mas a verdade é que basta tempo para encontrar informações sobre qualquer um na internet, já que não temos legislação nenhuma de proteção à informação. Depois de alguns dias de ameaças insinuando agressão e estupro, um descuido meu - a confirmação, no Facebook, de que ia a um evento - motivou a criação de um tópico no chan discutindo quais deles iriam até lá para “calar minha boca”. Daí, bastaram duas horas para que encontrassem e publicassem meu nome completo, endereço residencial e fotos e vídeos, usados para criar todo tipo de montagem. Nesse mesmo dia, usaram - alegadamente - cartões de crédito clonados para comprar e enviar para minha casa desde artigos de sex shop até vermes e esterco, passando por materiais de construção e camisetas com fotomontagens feitas com fotos minhas. O nonsense, para eles, faz parte da piada, e apesar de serem itens em princípio inofensivos, a tortura psicológica é difícil de lidar e faz parte da estratégia de intimidação. O objetivo é me calar, e isso fica claro quando os anônimos dizem coisa como “vamos fazer essa vadia pedir desculpas e nunca mais falar disso na vida dela” e “não vamos parar até que ela cometa suicídio”.
Printadas e impressas, foram mais de 600 páginas A4 de injúrias, cyberbulling, ameaças e ofensas. Como eles têm meu endereço, decidi por precaução passar um tempo fora de casa. Continuo sendo a favor do anonimato na web, que protege a troca de informações sigilosas e resguarda governos democráticos, e também não acho que o chan deveria ser tirado do ar. Isso seria inútil, posto que outro entraria no ar em seguida.
Além disso, apesar de o espaço ser usado para cometer crimes que vão de ódio a pedofilia, não é frequentado só por criminosos. Muitos jovens e adultos comuns têm nesses espaços um porto seguro para discutir assuntos pertinentes e inofensivos, como filosofia, política, música e quadrinhos. O que assusta é que, ao lado deles, estão também os donos de discursos de ódio alimentados por anos de machismo e racismo velado, desses que muita gente defende serem inofensivos, mas que, na minha opinião, acabam construindo monstros, jovens cheios de ódio e energia para constranger, ofender, ameaçar, perseguir e causar medo. E eles estão mais próximos do que pensamos: são nossos vizinhos, colegas de trabalho, nossos funcionários, nossos namorados, nossos filhos.
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