Com a recente reedição das obras de Natalia Ginzburg pela Companhia das Letras, os leitores brasileiros tiveram mais uma oportunidade de desbravar romances emblemáticos da italiana, como Léxico Familiar e Caro Michele, publicados anteriormente pela extinta Cosac Naify. Do ensaísmo da autora, o único exemplar disponível até então era a coletânea As Pequenas Virtudes — certamente uma privilegiada porta de entrada para os seus textos de não ficção, em que seu olhar atento aos detalhes cotidianos se mescla com memórias de pessoas queridas, como o poeta e amigo Cesare Pavese, e com relatos de perdas e deslocamentos provocados pela guerra e pelo fascismo que dominou a Itália. Agora, a editora Âyiné vem ampliar esse leque, com os textos reunidos em Não Me Pergunte Jamais, escritos, em sua maioria, para o jornal La Stampa entre dezembro de 1968 e outubro de 1970 e compilados em 1989, dois anos antes da morte da escritora. “[...] esses escritos talvez sejam algo semelhante a um diário, no sentido que fui anotando pouco a pouco o que ia lembrando e pensando; por este motivo, a ordem cronológica é a mais correta”, declara Ginzburg, ressaltando a percepção que teve de que as suas recordações pessoais se imiscuem mesmo nos textos sem pretensão memorialística. Em As Pequenas Virtudes, ela já apresentava uma voz mais proeminente, sobretudo em comparação a romances como Léxico Familiar, em que o pronome “eu” se faz presente de forma tímida, embora se trate da história de sua própria família e de sua infância em Turim. Nesta coletânea, no entanto, a primeira pessoa ganha bastante evidência, em uma prosa ainda muito rítmica, cadente e aparentemente singela (logo se percebe que a suposta simplicidade ganha contornos surpreendentes).
Essa presença mais saliente, porém, nunca se traduz em afirmações incisivas, categóricas. Produzidos já em sua fase de maturidade, os 32 textos de Não Me Pergunte Jamais revelam uma personalidade marcada pelo ceticismo e mesmo por certa resignação, de alguém que já passou pelas experiências as mais intensas e que, portanto, coloca-se em uma posição de permanente observação e questionamento. “O mundo ao redor que gira e se transforma conserva somente pálidos vestígios do mundo que foi o nosso. Nós o amávamos não por considerá-lo belo ou justo, mas porque nele dissipamos nossa força, nossa vida e nosso espanto. O mundo que temos hoje diante dos olhos não nos espanta, ou nos espanta muito pouco, mas nos escapa e nos parece indecifrável, e nele conseguimos ler apenas pálidos vestígios do que era”, escreve a autora no ensaio intitulado 'A Velhice'. Certezas absolutas sobre o passado ou presente, de fato, não fazem parte do universo de Ginzburg, que, sem constrangimentos ou afetações, frequentemente põe em xeque a sua própria memória e o seu repertório pessoal. No ensaio que dá nome à coletânea, essas características rendem passagens dotadas de humor, que, sempre sutil, é outra marca registrada de sua escrita. O texto traz à tona, por exemplo, um episódio em que ela, ao assistir a uma ópera, achava fascinante a voz de um cantor até a sessão ser subitamente interrompida: “Os outros, os entendedores, julgaram que aquele cantor cantava mal. Depois ele apareceu por entre as cortinas e pediu desculpas. Lembro dele, baixo, pequeno, humilhado, de cabeça baixa. Então todos aplaudiram. Eu aplaudi o mais forte possível, porque o achei simpático, suave e humilde, e também porque, para mim, que ignoro tudo sobre música, sua voz rouca pareceu extremamente doce”, narra a autora, cuja relação com a ópera a remetia à infância, quando a mãe cantarolava as palavras “não me pergunte jamais”, tiradas da obra Lohengrin, de Wagner. Os relatos da infância, aliás, ecoam em muitos dos textos sobre a vida adulta. É difícil não associar a menina que se distraía durante as tarefas escolares, em suas fantasias alimentadas pelos livros lidos escondido em casa — como narrado nos ensaios 'Infância' e 'Bigodes brancos' —, com a mulher que se sente perdida em meio às sessões com o analista, presa aos detalhes do consultório ou das vestes do profissional, dizendo-se incapaz de entender as diferenças entre Freud e Jung, como conta em 'A minha psicanálise'.
Nesses textos, a melancolia revela-se também uma constante na vida da escritora. Na infância, após ter “descoberto a tristeza”, passou a se entreter com uma “enxurrada de poemas tristes”, como se fosse a única maneira não de se livrar da melancolia, mas de “conviver com ela”. Ao refletir sobre o seu tempo, Ginzburg parece mostrar como essa convivência lhe seria cara — em 'Vida coletiva', um dos ensaios mais implacáveis do livro, critica o utilitarismo de seu tempo, em que tudo o que “constitui a vida do indivíduo” é menosprezado, tudo aquilo que, em sua visão, é precisamente o que dá vida à poesia: “o pensamento solitário, a fantasia e a memória, as lamúrias pelo tempo perdido, a melancolia”. Muitos dos ensaios são dedicados a inquietações despertadas por exposições, peças teatrais, filmes e livros. Ao abordar a obra de Edvard Munch, ela adverte que sua apreciação “não é de quem ama e entende a pintura”; envolveria, em vez disso, “um modo de olhar um tanto primitivo, com olhos de romancista” e, nesses termos, ela oferece aos leitores uma instigante reflexão a partir da tela O grito, que lhe faz afirmar como “nossos próprios fantasmas têm, em suas mãos, armas mortais”. É na literatura, certamente, que Ginzburg encontra terreno mais seguro para desenvolver juízos estéticos. Em 'Cem Anos de Solidão', ela parte de seu arrebatamento pela obra de Gabriel García Márquez para refutar a ideia de “morte do romance” e, então, enaltecer tal forma literária: “Os verdadeiros romances têm o poder de nos livrar da covardia, da letargia e da submissão às ideias coletivas, aos contágios e aos pesadelos que respiramos no ar. Os verdadeiros romances têm o poder de nos conduzir, repentinamente, ao coração do real”.
Ginzburg, que integrara o Partido Comunista, fora ativista e deputada, expõe no ensaio 'Dois comunistas' o seu gradativo afastamento de grandes ideais políticos. Sua atividade partidária, confessa ela, não teria se baseado em motivações racionais, mas “viscerais, obscuras e subterrâneas”, e, das poucas certezas que lhe restavam, uma delas é de que, se um dia houvesse uma revolução, ela “preferiria ser assassinada a assassinar alguém”. O ponto alto da coletânea talvez se encontre entre os textos finais, como 'Sobre crer e não crer em Deus', que, com um tom filosófico, exala em um só lance a sensibilidade única da autora, sua disposição para refletir sobre a existência de forma cuidadosa, sempre atenta às sutilezas do comportamento humano. Os ensaios se revelam, por fim, um exame de sua própria trajetória e da centralidade da escrita em sua vida, que, como descreve em 'Retrato de escritor', não era um dever ou um prazer — “era e é como habitar a terra”.
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