Uma esquina com menos de 70 m² virou assunto essa semana na City Lapa, bairro na zona oeste paulistana projetado na década de 1920 pela Companhia City e conhecido pela profusão de áreas verdes – algumas das quais malcuidadas. Incomodadas com o acúmulo de entulho e a impossibilidade de andar pela calçada dominada pelo mato, duas moradoras se mobilizaram. Panfletaram nas residências do entorno, convidando os vizinhos a discutir alternativas para a área. No dia marcado, apareceram a dentista Ana Campana e a nutricionista Neide Rigo, colunista do Paladar – as mesmas moradoras que haviam convocado o encontro. Por conta própria, começaram a limpar o terreno dias depois e receberam a ajuda de vizinhas atentas à labuta solitária das duas. Passado um ano, a esquina hoje abriga uma horta colorida por flores de cosmo. Um “jardim de variedades” com cerca de cem espécies de plantas medicinais, alimentícias e ornamentais mantidas por 15 voluntários. Uma caixa de jataís (abelhas sem ferrão), uma cacimba para a rega e bancos de toco de árvore completam o modesto mobiliário.
Mas nem tudo são flores de cosmos na horta comunitária da City Lapa. Na última semana, os hortelões se surpreenderam ao ver metade da capa da publicação do bairro, o Jornal da Gente, uma foto com o texto: “Moradores usam área verde da Rua Barão de Itaúna e João Tibiriçá para plantio de chás e ervas. Nem a calçada escapou. O grupo plantou até no meio da calçada no momento em que se debate a mobilidade urbana”. A gota d’água foi o plantio de mudas de capim-santo em fissuras da calçada. “Substituímos um capim que não presta pra nada por um que é santo. Ao fazer isso, só explicitamos a falta de manutenção das calçadas”, diz Neide. “Havia um lugar degradado e a forma que encontramos de dar uma ocupação a ele foi essa, limpando e plantando.”
O post sobre o capim-santo da discórdia publicado no blog da nutricionista se espalhou pelas redes sociais e resultou numa carta de apoio assinada por integrantes do Hortelões Urbanos, grupo virtual com 14 mil membros. No documento, pedem uma política pública para as hortas urbanas de São Paulo. “Tem gente que acha horta algo feio, e mexer na terra, sujo. Acham que vai atrair mendigos. Querem que aquele espaço público seja só deles”, diz Thais Mauad, que redigiu o texto. Patologista do Laboratório de Poluição Atmosférica da Faculdade de Medicina da USP, ela estuda o impacto da poluição nesses espaços.
“O que mostramos foi a irregularidade da calçada. Você tem que consultar o pessoal da associação, que não apoia [A HORTA]porque tem moradores desfavoráveis”, justifica Maria Isabel Coelho, editora do Jornal da Gente. Contudo, o presidente da Amocity, o advogado Jairo Glikson, afirma que a associação não quer se envolver. Prefere “ficar quieto e ver o que acontece”. “Não quero polarizar porque temos problemas maiores, como a Lei do Zoneamento e a ponte de Pirituba. A ideia da horta é muito boa, e a gente entende que o bairro precisa de mais árvores. Mas escutamos argumentos contra: a questão da contaminação do solo, de saber se o local é adequado para plantar comida; a alegação de que a horta foi feita de forma arbitrária, sendo que tem gente contra porque cria aglomeração – já teve banco no bairro inutilizado com óleo para evitar ladrões, que sentavam para olhar as casas que iam roubar, e de maconheiros, essas turmas complicadas – e se tem autorização de uso”, diz Glikson. A reportagem pediu nomes de moradores contrários, para que fossem ouvidos, mas [A HORTA]Glikson[/A HORTA] negou-se, para “não aumentar a polêmica”.
A desavença sobre as calçadas aparentemente será resolvida: “Vamos consertar nos próximos 30 dias”, promete o subprefeito da Lapa, José Antonio Varela Queija. Quanto à autorização de uso, Neide Rigo protocolou no órgão uma carta de intenção para celebrar um termo de cooperação. “A Prefeitura quer que os espaços sejam ocupados em parcerias. Toda cooperação é bem-vinda”, diz Queija.
A celeuma do caso City Lapa põe em evidência a necessidade de se estabelecer novos modelos de uso e convivência em espaços públicos. Situações semelhantes ocorreram em Brasília, onde uma horta virou motivo de briga, e na própria cidade de São Paulo. Voluntária na Horta das Corujas, na Vila Madalena, a jornalista Claudia Visoni já foi chamada de porca por mexer na terra. Ouviu também que “se morava em Pinheiros, tinha dinheiro para ir ao mercado e não precisava plantar ali”. “Somos vistos como exóticos, um pessoal engraçado. Vivemos um momento de inflexão cultural. A gente vem de décadas de reclusão em que o espaço público era apenas um lugar para passar o mais rápido possível. O que propomos é ressignificar o que é espaço público.”
Para o professor de psicologia ambiental do Instituto de Psicologia da USP Gustavo Martineli Massola, “existem pessoas que têm como ideal de beleza urbana a diminuição das áreas verdes. E o território da cidade foi, historicamente, loteado de maneira desigual, norteado pela especulação imobiliária. A relação com a terra sempre foi voltada à manutenção do poder, do status, do dinheiro. Grupos como o dos hortelões invertem essa lógica, e isso incomoda”, diz.
Outra entusiasta da recente onda de apropriação dos espaços públicos pela população, é a urbanista e professora da FAU-USP Raquel Rolnik. Ela lembra o abandono dos espaços coletivos nos anos 1990, quando proliferou o modelo de shoppings centers, condomínios e áreas de lazer fechadas. “Essa retomada é a coisa mais importante que aconteceu em São Paulo nas últimas décadas. E ela não está só na apropriação dos lugares públicos, nas hortas e blocos de carnaval. Está também na luta pelos transportes não motorizados, na diminuição do espaço dos carros, no aumento da oferta de espaços para o cidadão. A questão que se coloca agora é como lidar com essa potência de criação e manter espaços democráticos para a decisão sobre o destino de um lugar.”
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.