Em um março de águas insuficientes e temperatura política nas alturas junto com a cotação do dólar, parlamentares bateram boca na CPI da Petrobrás, panelas soaram contra o pronunciamento de Dilma Rousseff, cabeças investigadas do Congresso Nacional acusaram o Planalto de empurrar a crise “do outro lado da rua pra cá”, o ministro da Fazenda ameaçou se demitir para impedir a derrubada do veto a subsídios de seu ajuste fiscal e manifestações contra e a favor do governo foram marcadas para o final da semana.
Em meio ao habitual fla-flu político e a teses histéricas sobre o fim do Brasil, coube a um americano baixar a bola, porque o jogo segue, caro torcedor. “Lembra quando todos falavam que o Brasil era um foguete em direção à Lua, que ninguém segurava o Brasil? Aquilo foi dramaticamente exagerado. Agora, o suposto desastre enfrentado pelo Brasil também está sendo exagerado”, ponderou, em uma declaração à BBC, o brasilianista Peter Hakim, de 72 anos, presidente do think tank especializado em análise política e estudos da democracia Inter-American Dialogue.
Na entrevista concedida de Washington ao Aliás, Hakim não minimiza a gravidade do atual cenário de estagnação econômica com inflação em alta por que passa o País, nem contemporiza sobre a responsabilidade do governo no escândalo da Petrobrás, “uma operação de que se beneficiaram principalmente o PT e seu parceiro mais importante, o PMDB”. Mas rebate os que se apressam em pedir a derrubada, “sem evidências sólidas de comportamento criminoso”, de uma presidente democraticamente eleita. “Falta de apoio público não é razão para impeachment.”
Vista de fora, quão grave parece a crise política no Brasil?
Até o momento, tem havido muito mais discussão sobre a crise econômica do que sobre os problemas políticos que o País enfrenta. A deterioração da situação política, assim como o escândalo da Petrobrás, tendem a ser vistos como obstáculos para que o Brasil possa efetivamente lidar com o atual cenário de estagnação econômica, inflação em alta, problemas fiscais generalizados e queda nas exportações e nos investimentos. De fora, a atenção que se dá à política brasileira está focada basicamente na especulação sobre como Dilma será capaz de manter seu emprego.
Aparentemente, seu sucesso depende da aprovação de medidas impopulares em um Congresso conflagrado. É algo possível?
Dilma enfrenta enormes desafios em diversos fronts. E essa desafortunada combinação de problemas - economia em dificuldades, escândalo de corrupção sem precedentes afetando partidos da coligação, queda de sua popularidade e líderes da Câmara e do Senado sob investigação - torna mais difícil a solução de cada um deles. É sempre difícil implementar medidas de austeridade, e a potencial perda de apoio de líderes legislativos que deveriam ser seus aliados tornará a tarefa do ajuste fiscal ainda mais difícil. Dilma terá que exercer uma liderança excepcional para pôr a economia nos eixos e administrar o escândalo da Petrobrás em um período de pouco apoio político. Capacidade de liderança, no entanto, é precisamente o que um presidente precisa demonstrar em circunstâncias conturbadas. Dilma terá que assumir o comando, sob risco de a situação se tornar sem saída.
O fato de nem Dilma nem Aécio Neves estarem na lista de Janot o surpreendeu?
Eu teria me surpreendido se Dilma, particularmente, e Aécio estivessem na lista. Se isso tivesse ocorrido, o público brasileiro teria que estar preparado. Acusar o presidente da República de um crime grave, sem aviso prévio ou perspectiva do que possa acontecer, causaria um verdadeiro choque político no País e no exterior. O que um presidente faz diz respeito a milhões de pessoas. Ele é um poderoso símbolo nacional.
Embora vários partidos - PP , PMDB, PT, PSDB e PTB - estejam na lista de Janot, dirigentes do PT dizem que há um processo de ‘criminalização’ de seu partido, como se ele tivesse inventado a corrupção. A crítica é justa?
É verdade que os principais partidos do País estão na lista. Mas, como no caso do mensalão, essa foi uma operação de que se beneficiaram principalmente o PT e seu parceiro mais importante. É claro que o PT não inventou a corrupção, mas no campo político o partido demonstrou mais ambição e uma capacidade sem precedentes para a “inovação”. E foi pego.
No pronunciamento de domingo, Dilma culpou a crise internacional pela situação econômica brasileira. Para a oposição, foi o ‘intervencionismo estatal’ no primeiro mandato que levou o País ao desastre. Quem tem razão?
Ambos estão certos. Tanto fatores internacionais quanto políticas econômicas equivocadas do governo são responsáveis pela crise. No entanto, a má gestão do governo leva mais da culpa. Uma política econômica mais cautelosa, menos ideológica e mais orientada pelo mercado - especialmente se acompanhada de algumas reformas - poderia ter mantido a economia em uma agenda de crescimento. Talvez não tão rápida quanto todos gostariam, mas certamente melhor do que o Brasil tem agora. A nomeação de Joaquim Levy sugere que Dilma entendeu isso.
As medidas de austeridade são o caminho correto agora? Para o empresário Benjamin Steinbruch, da CSN, é inexplicável que a taxa de juros no Brasil seja de 12,75%, enquanto está próxima de zero no resto do mundo.
Sim. A minha impressão, e a da maioria das pessoas com quem tenho conversado, é de que Levy está no caminho certo. E é reconfortante saber que Dilma parece estar apoiando-o fortemente agora. Sim, o Brasil tem uma taxa de juros inusualmente alta - mas tem sido assim há muito tempo. Steinbruch está errado, e isso não é difícil de demonstrar. Quando a inflação é fonte constante de ansiedade em um país, que ainda tem uma gestão fiscal irregular e errática, a política monetária, ou seja, altas taxas de juros, é uma forma de compensar. Outros países vivem aterrorizados com a perspectiva de deflação, o que explica seus juros baixos.
Vamos falar das manifestações. Alguns grupos têm pedido o impeachment da presidente e até intervenção militar. Esse clima acirrado pode se tornar um risco real para a democracia?
Não estou familiarizado com os detalhes legais para um processo de impeachment no Brasil, mas nos EUA os requisitos são rígidos. Duvido que a Constituição brasileira permita que um presidente seja cassado porque ele, ou ela, é impopular. Falta de apoio público não é razão para impeachment. Nem decisões governamentais equivocadas - a não ser que tomadas deliberadamente em razão de lapsos éticos. Teria de haver uma ligação clara entre Dilma e o escândalo de corrupção na Petrobrás ou algum outro malfeito para que um impeachment fosse justificável. Diante de tudo que o Brasil passou sob o regime militar e dos sucessos relativos que o País obteve desde a redemocratização, eu ficaria muito surpreso se essa agitação por intervenção militar tivesse ressonância nacional. Repito: o impeachment não resultará de protestos de rua. É um processo que exige evidências sólidas de comportamento criminoso e profundamente anti-ético.
A marcha pró-governo da CUT e do MST na sexta-feira ocorreu na esteira de um comentário polêmico do ex-presidente Lula, que convocou o ‘exército’ dos sem-terra para ir às ruas. Foi uma fala adequada?
Acho que a declaração de Lula não ajuda nada, sobretudo levando em conta a reputação do MST de protestos violentos. Marchas de protesto e desobediência civil podem ser sinais de uma democracia vibrante, como foi o caso das manifestações de 2013. Mas os esforços para resolver impasses políticos ou impasses “na rua” também são sinais de grande fraqueza nas instituições formais de governo. Em muitos aspectos, o movimento dos direitos civis nos EUA e os protestos anti-Vietnã demonstraram ambas as dimensões - a incapacidade das instituições formais de se adaptar às novas circunstâncias, mudar de rumo e resolver os problemas sérios, mas também o compromisso dos grandes grupos de cidadãos de promover os valores democráticos e humanos fundamentais. O que ainda não está claro para mim no Brasil é se esses protestos e contra-marchas são motivados mais por interesses partidários que por reformas.
Fala-se muito em reforma política no Brasil, mas, como no romance de Lampedusa, ‘mudam-se as coisas para que tudo permaneça igual’: saem políticos e governos, mas os escândalos de corrupção e financiamento de campanha se sucedem. Como romper isso?
Seja para se manter as regras ou para se efetivar mudanças, a concepção e implementação de reformas políticas são sempre difíceis. O Chile levou 25 anos de governos democráticos para fazer avançar as regras eleitorais no Congresso. Além disso, o resultado dessas reformas é com frequência diferente do que se esperava. A introdução de eleições primárias abertas nos EUA, por exemplo, uma iniciativa do Partido Democrata para expandir o papel dos eleitores comuns e reduzir a influência de líderes partidários, deu num sistema político de campanha permanente, onde extremistas de ambos os partidos tendem a ter uma influência desmedida e o compromisso é rendição. Leis e disposições constitucionais não são capazes de garantir competência, honestidade e responsabilidade por parte dos políticos. Mas é importante tentar corrigir falhas e injustiças. Mesmo que reformas nem sempre funcionem bem e, por vezes, sejam até contraproducentes, elas são necessários em quase toda parte - e com certeza no Brasil hoje.
Como é para um brasilianista acostumado com a imagem de descontração e alegria que se atribui ao País perceber o clima de ódio e intolerância que vazou das redes sociais para as ruas?
Ainda não estou seguro de que realmente haja um clima de ódio no Brasil. Pessoas de todas as partes podem sentir raiva e indignação com a política, as ideias ou a religião. Não há nenhuma razão para que no Brasil seja diferente. Brasileiros são geralmente felizes e otimistas, mas também se deixam levar pela fúria quando o assunto é política ou ideologia. Nenhuma contradição aí.
Após a chamada ‘onda vermelha’ de governos de esquerda na América Latina na última década, Brasil, Argentina e, especialmente, Venezuela enfrentam crises políticas. Um ciclo está se fechando no continente?
Eu não fico muito confortável com esses rótulos. Imagens como a “onda vermelha”, a “maré rosa” e afins mobilizam a imprensa e conseguem até um pouco de atenção acadêmica, mas não acho que sejam explicações convincentes sobre o que acontece na América Latina. Claro que países influenciam uns aos outros, mas as mudanças políticas refletem sobretudo as circunstâncias específicas de cada um. Enquanto o Brasil estava desfrutando de um ciclo de crescimento nos últimos sete ou oito anos, ninguém o comparava com Venezuela e Argentina. Agora que a economia estagnou e a política enfrenta problemas, vira parte da onda vermelha. Essa não é uma análise real.
E qual é sua análise?
Os três países chegaram às atuais situações por causa de caminhos e escolhas distintas. Há traços comuns, é claro, que podem ter valor explicativo. Mas, apesar dos reveses e da raiva pública de que estamos falando, o Brasil é o que tem as melhores perspectivas para uma recuperação sustentada. Ao contrário da situação desesperada de Venezuela, a Argentina não está nem perto de entrar em colapso. Na verdade, com as eleições de outubro os argentinos têm uma clara, embora não fácil, oportunidade de sair de seu pântano político e econômico. Já Bolívia e Equador conseguiram ajustar suas economias muito bem, embora ambos enfrentem dificuldades com a queda do preço do petróleo e do gás. No ano passado, (o ex-presidente chileno) Ricardo Lagos declarou que (o presidente equatoriano Rafael) Correa é o primeiro em décadas que efetivamente governa o país. O mesmo se aplica à Bolívia, que teve sua maioria indígena representada pela primeira vez na política.
Para enfrentar a crise, alguns começam a defender um entendimento entre os ex-presidentes Lula e Fernando Henrique Cardoso. Em entrevista ao Estado, FHC disse que ‘não é hora de afastar Dilma nem de pactuar com ela’. O que acha da afirmação?
Não estou certo sobre como interpretar essa frase de FHC. Ele parece sugerir que a situação ainda não é crítica o bastante para que se considere ou cooperar com Dilma para ajudá-la a atravessar o período difícil ou para se buscar uma solução constitucional que a exclua. Parece que ele acredita que Dilma deva trilhar seu caminho para sair da crise atual. Tendo a concordar com FHC. É hora de dar um tempo à presidente para que ela conduza o País ou mostre definitivamente que não está à altura da tarefa.
Qual é a tarefa que Dilma tem de enfrentar?
Idealmente, ela teria de assumir o papel de “reformadora-chefe”. Em primeiro lugar, sua equipe econômica é excelente e ela deve fazer de tudo para seguir seus conselhos e avançar suas propostas dentro do PT, perante o Congresso, junto ao empresariado e à sociedade. Nessa frente, ela não pode aceitar não como resposta. Em segundo lugar, a presidente deve colocar seu peso político em favor de uma investigação completa, intensiva e transparente na Petrobrás. Dar aos procuradores e ao Poder Judiciário todas as informações disponíveis e incentivar outras pessoas em seu governo a fazer o mesmo, além de certificar-se de que a imprensa e o público sejam devidamente informados. Desenvolver uma agenda anticorrupção que prometa não mais “mensalões” e “lava jatos”. Em terceiro lugar, colocar a reforma política no alto da sua lista de prioridades. Há uma série de ideias viáveis para melhorar a qualidade, as normas éticas, a transparência e capacidade de resposta dos representantes eleitos a seus eleitores. Para dar aos cidadãos mais acesso ao seu governo e reduzir a influência de grupos de interesse. Para melhorar a qualidade dos serviços públicos. Em quarto lugar, Dilma deveria rever a política externa do País, para que responda a interesses econômicos, sociais e de segurança da população, reflita seus valores - democracia, direitos humanos, igualdade - do ambiente doméstico para a arena internacional. Se a presidente for capaz de obter alguns progressos nessa agenda, poderá deixar um legado notável.
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