Vou-lhes contar uma história, de contornos épicos, que teve início em 1937 e só recentemente chegou ao capítulo final.
Num estúdio de som, na Broadway, o jovem prodígio do rádio e do teatro Orson Welles, ainda a dois anos de estrear no cinema com Cidadão Kane, emprestava sua poderosa voz à narração de um documentário de propaganda pró-republicana, Terra de Espanha, dirigido pelo holandês Joris Ivens e escrito por Ernest Hemingway e John Dos Passos. A determinada altura, Welles sugeriu a eliminação de duas frases da narração por literárias e redundantes. Hemingway protestou, xingou Welles de “bicha” e puxou briga, que terminou como num filme de John Ford, com uma ruidosa confraternização etílica.
Naquele dia, ao lidar com a espaçosa vaidade do escritor, Welles notou um forte componente homossexual em sua macheza, observação que serviria de base, nos anos 1960, ao roteiro de The Secret Beasts (As Feras Secretas), sobre um diretor de cinema louco por touradas, que se encanta, platonicamente, por um fascinante “matador”. No script seguinte, de título novo, The Other Side of the Wind (O Outro Lado do Vento), o toureiro já se transformara num ator, John Dale, descoberto e atormentado por outrora endeusado cineasta, chamado Jake Hannaford.
Hannaford era mais um sucedâneo de Welles que uma paródia de Hemingway. Também de volta a Hollywood após um autoexílio de dez anos na Europa, buscava recuperar seu status perdido com um projeto artisticamente ambicioso, intitulado The Other Side of the Wind. Welles sempre negou que Hannaford fosse seu alter ego. Comprometedoras semelhanças, contudo, havia.
Welles retornou a Hollywood no início de 1970. A trama de sua rentrée cinematográfica se passaria num só dia e era seu plano rodar tudo em oito semanas. Levaria seis anos. A maior parte da ação se desenrolaria na festa de 70 anos de Hannaford, interpretado pelo cineasta John Huston. Embriagado, Hannaford morreria num acidente de carro na manhã seguinte.
“O filme é sobre o quê?”, perguntou Huston ao velho cupincha Welles. “É sobre um diretor de filmes safado (“bastard”, no original)...É um filme sobre nós, John”, explicou Welles. Quanto ao sentido do título, o cômico Rich Little, um dos figurantes da festa de aniversário, foi o primeiro a perguntar. “Não faço a menor ideia”, respondeu-lhe Welles.
Com baixo orçamento, reduzidas locações (uma casa alugada em Carefree, Arizona, e um canto nos fundos da MGM) e um punhado de amigos e ex-colaboradores no elenco, Welles começou a rodar em 23 de agosto de 1970. Do início ao fim, um tremendo frenesi. Welles varava as noites reescrevendo cenas e diálogos. De dia, enquanto filmava, acumulava sua abnegada equipe de pedidos sempre urgentes e não raro extravagantes, que todos, idólatras do patrão, se esfalfavam para atendê-lo.
Frank Marshall, futuro produtor de blockbusters como Os Caçadores da Arca Perdida e De Volta Para o Futuro), fazia todas as vontades do cineasta; ainda assim foi demitido (e readmitido) várias vezes. O mais dedicado da equipe foi o estreante diretor de fotografia Gary Graver, que só largaria de vez o projeto quando já estava para morrer, em 2006.
A festa é a peça de resistência do filme. Um show à parte para os cinéfilos, com vários cineastas –Norman Foster, Peter Bogdanovich, Paul Mazurski, Claude Chabrol, Dennis Hopper, Henry Jaglom, Curtis Harrington – discutindo os destinos da indústria cinematográfica, atores veteranos como Edmond O’Brien e Paul Stewart, mais as atrizes Susan Strasberg (no papel de uma crítica mordaz inspirada em Pauline Kael), Lili Palmer (como uma versão morena de Marlene Dietrich), Stéphane Audran e Mercedes McCambridge.
Bogdanovich conhecera Welles pouco depois de lançar sua primeira experiência como diretor, A Última Sessão de Cinema, e não perdia uma chance de tietar o mestre. Escalado para encarnar um jornalista meio idiota, a fazer dupla com o crítico Joseph McBride, no papel de um acadêmico metido a besta, Bogdanovich acabou brindado com a persona de Brooks Otterlake, jovem cineasta protegido de Hannaford, que por ele se sente ameaçado, como Margo Channing por Eve Harrington, em A Malvada.
Entre 1971 e 1973, Welles aceitou tudo o que lhe ofereciam, como ator e celebridade, para cobrir as despesas do interminável The Other Side of the Wind. Fez filmes, shows de TV, gravou anúncios (US$ 10.000 de cachê por dia), encarnou Long John Silver, o vilanesco pirata da enésima versão de A Ilha do Tesouro, cujas filmagens lhe possibilitaram conhecer dois financiadores alemães, dispostos a investir no projeto.
Atropelado por dificuldades legais e financeiras, O Outro Lado do Vento continuava inacabado quando Welles morreu, em 1985. Aí deslanchou um dos mais afincados mutirões da história do cinema, liderado por Bogdanovich, Frank Marshall, Filip Jan Rymsza (que vasculhou todo o papelório de Welles arquivado na Universidade de Michigan) e o montador Bob Murawski (Oscar por Guerra ao Terror). Até o ano passado, não se sabia quanto de material filmado na verdade sobrevivera. Mais de mil latas de negativo, contendo quase 100 horas de filmagem, foram encontradas em Paris, em perfeito estado de preservação. Só a banda sonora, bem castigada, exigiu dedicação extra.
Para sustentar essa trabalheira, montou-se um consórcio de investidores comandado por Beatrice Welles (filha de Orson), a atriz croata Oja Kodar (viúva do cineasta e co-roteirista do filme) e o iraniano Mehdi Boushehri, genro do xá Reza Pahlevi. E o último filme completo de Orson Welles finalmente ficou pronto. Não a tempo de ir a Cannes, mas a Veneza e ao festival de Telluride foi. Exibiram-no ontem no Festival de Nova York. Mês que vem chegará ao Netflix, que uma boa grana investiu nos últimos meses da aventura.
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