O que acontece quando o hip-hop se torna cinquentão?Bom, a julgar pela apresentação do pioneiro grupo de rap norte-americano, o Public Enemy, neste sábado à noite, no Anhembi, no festival Black na Cena, ele se torna mais divertido, mais legítimo, mais pegado. Don"t Believe the Hype, a música que incendiou o Anhembi (com público modesto, diga-se), mostrou o Public Enemy de Chuck D e Flavour Flav em absurda forma - apesar de os dois MCs já terem ultrapassado a barreira dos cinquenta anos.Eles entraram em cena com o punho estendido dos Panteras Negras, um verdadeiro exército, logo após o show ultrapolitizado de Marcelo Yuka (que atacou a política das Unidades de Polícia Pacificadora do Rio de Janeiro: "Eu não acredito em paz armada") e a festa dub de Lee Perry (que pintou o cabelo de vermelho e fez um show mais forte do que o último no País, no Via Funchal). A corte do Public Enemy inclui dançarinos e músicos com roupas de camuflagem de exército, seguranças como animadores de torcida, familiares pelos bastidores - quase como uma tropa de ocupação.Sua mensagem, manuseada com potência e originalidade por Chuck D. (Carlton Douglas Ridenhour, também célebre escritor e pensador de esquerda) e Flavour Flav (William Jonathan Drayton Jr, também uma personalidade de reality shows de televisão), continua atual e fresca - talvez mais fresca e atual do que nunca. Fight the Power, Bring the Noise, 911 is a Joke: os hits seguram um ideário básico de resistência à opressão e uma eterna incitação à desobediência civil.Flavour Flav, essa espécie de Tião Macalé do rap, com seu relógio do gato de Alice no País das Maravilhas no pescoço, parece uma entidade sobrenatural. Ele chegou ligado, trocando de roupa na frente da plateia enquanto o DJ Lord aquecia os ouvidos. Lá pela quarta musica, pediu um minuto de silêncio ao publico em homenagem a "my girl, Amy Winehouse", assim como para outro colega que se foi, Mr. Magic. "Ela tinha um grande talento, mas parece que queria que isso acontecesse, pelo jeito como vivia", disse Chuck D. "O artista tem de se apoiar somente no seu trabalho."A combinação da liderança de Chuck D e Flavour Flav com a juventude e virtuosismo de alguns músicos, como o guitarrista Khari Wynn (que chegou a tocar com os dentes, como Hendrix), tornou a apresentação um momento histórico no Anhembi. Chuck D. saudou os grafiteiros que pintavam um painel sobre um camarote VIP, e Flavour saudou a plateia inteira, porque "sem vocês não haveria Public Enemy". Entre os fãs, o humorista Rafael Cortez, do CQC, que foi até lá com o intuito de mostrar sua tatuagem de Public Enemy para o grupo, e conseguiu mais que isso: fez uma foto com a banda.Flavour Flav tocou baixo (bem mal, diga-se, mas não tem importância, havia um baixista de verdade) e eles deram um grande empurrão para o hip-hop nacional, saudando todos os manos presentes, fazendo a reverencia de mestres para discípulos com elegância e verdade. "Lutem contra o poder" é um libelo do final dos anos 80, e o discurso cada vez mais sofisticado de Chuck D. ensina que o poder é móvel, se afirma em instancias da vida cotidiana, e que é preciso identificar e combater o autoritarismo o tempo todo.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.