Assim como George Orwell, Thomas Hardy e W.H. Auden, a romancista britânica Jean Rhys não queria ser tema de biografia e tomou medidas para enlamear seus rastros. Rhys destruiu muitas cartas, rasgou seções de diários e ao longo de toda a vida manteve, nas palavras de Miranda Seymour, sua mais recente biógrafa, uma “discrição enlouquecedora”.
Essas evasivas fracassaram. O livro de Seymour é a terceira grande biografia de Rhys, depois da longa e excelente de Carole Angier (1985) e do livro mais curto e atmosférico de Lilian Pizzichini (2009). A biografia de Seymour vem sob um título lúgubre: I Used to Live Here Once: The Haunted Life of Jean Rhys [algo como “Certa vez vivi aqui: a vida assombrada de Jean Rhys”, em tradução livre].
Então, na verdade, talvez Rhys (1890-1979) tenha conseguido se esconder, sim. Se você removesse expressões como “não existe um relato muito claro”, “não podemos ter certeza”, “um silêncio intrigante”, “é possível que”, “uma completa ausência de documentação”, “parece que”, “parece provável que” e “há muitas perguntas”, a biografia de Seymour encolheria uns 10%.
Essas expressões atrapalham o livro de Seymour, especialmente porque o que sabemos da vida e da carreira de Rhys é bastante, ainda que não chegue a ser enciclopédico. Ela é mais conhecida, claro, como autora de Wide Sargasso Sea (1966), uma sequência pós-colonial de Jane Eyre, de Charlotte Brontë. Contado do ponto de vista de Antoinette Cosway, esposa caribenha de Rochester, o romance se baseia na própria infância de Rhys na ilha de Dominica.
O romance foi publicado quando Rhys tinha 76 anos, depois que o mundo literário já a tinha esquecido. Os leitores correram atrás. Muitas pessoas – eu estou entre elas – são mais atraídas por seus romances anteriores, notadamente Good Morning, Midnight (1939) e seus livros de contos, que são mais sombrios, perspicazes, cômicos e melancólicos, repletos de mulheres vulneráveis e dolorosamente autoconscientes – mulheres solitárias que são, até certo ponto, alter egos ficcionais.
Rhys (pronuncia-se Rees) levou uma vida complicada que impossibilita qualquer resumo organizado. Ela deixou Dominica, onde seu pai era médico, para estudar em um internato inglês de Cambridge. Zombada por seu sotaque caribenho, pelo resto da vida falou com aquilo que Seymour chama de “sussurro cultivado”.
Ela queria se tornar atriz nos anos anteriores à Primeira Guerra Mundial, mas acabou em papéis secundários, muitas vezes no coro. Rhys tinha péssimo gosto para homens: dois de seus três maridos eram marginais charmosos que acabaram na prisão por fraude.
Um de seus primeiros manuscritos caiu nas mãos do romancista Ford Madox Ford, cuja reputação era maior do que é hoje. Para ela, Ford era como o tema de uma pintura saindo da moldura. Ford a aconselhou a mudar de nome – ela nascera Ella Gwendoline Rees Williams – e ajudou a publicá-la. Ela se tornou sua amante. Seus livros encontraram um público pequeno, e os problemas de dinheiro eram constantes. Rhys passou décadas, muitas vezes isolada e paranoica, em casas e apartamentos carcomidos de Londres antes de o sucesso chegar, tarde demais.
É apenas uma maneira de descrever sua vida. Também é possível se ater apenas aos detalhes mais trágicos e chocantes – ela era como uma praia atingida por furacões com certa regularidade – e ao fato de que Rhys era uma pessoa singularmente difícil.
Seu primeiro filho, um menino, morreu com 3 semanas de idade em um hospital no exato momento em que Rhys e seu marido estavam bebendo champanhe. Ela nunca se perdoou. Ela não tinha um forte instinto maternal. Seu segundo filho, uma menina, passou quase toda a infância em uma série de abrigos e orfanatos.
Rhys bebia muito para aliviar seus fardos e era conhecida por suas tiradas e avacalhações. “Não sou de lamentar, como algumas mulheres”, disse ela a um amigo. “Eu ataco”. Muitas vezes isso significava morder, arranhar, gritar ou cuspir.
Sua pele era fina, quase transparente, como a de um camarão. Ela e o segundo marido tinham brigas ferozes e acabaram na cadeia depois de uma delas. Depois que ele morreu, aos 60 anos, de ataque cardíaco, alguns pensaram que ela o havia deixado para morrer. Ela foi presa pelo menos uma vez por embriaguez pública, o que saiu nos jornais locais.
Quando um cachorro da vizinhança matou dois de seus gatos, ela jogou um tijolo na janela de seu dono. Ela às vezes lançava insultos antissemitas. Às vezes recebia ordens de se colocar sob cuidados psiquiátricos. Em seu livro Difficult Women, o escritor David Plante descreveu cruelmente a cena confusa quando, no final da vida, a magrela Rhys ficou presa no poço de um banheiro que ele tinha deixado aberto.
Seymour é autora de muitas biografias conceituadas, entre elas as de Mary Shelley, de Robert Graves e da esposa e da filha de Lord Byron. Seu último livro, de alguma forma, acabou lhe escapando. É curiosamente opaco. Por um lado, é arejado: o tipo de biografia em que a autora se faz fotografar diante de uma escola que Rhys frequentou e descreve conversas com vários moradores do local sobre suas pesquisas.
Por outro lado, é maldoso. Seymour inclui uma foto nada lisonjeira da editora de Rhys, a grande Diana Athill, pouco antes de sua morte, acima de uma legenda que diz: “O sorriso e as roupas brilhantes marcaram o ponto em que ela decidiu que eu merecia um pouco do seu tempo”.
A prosa e a análise são superficiais. Seymour deixa de fora muitas das melhores coisas que Rhys escreveu e disse – e assim a faz parecer menos inteligente do que era. Ela se detém no intenso interesse de Rhys por sua própria aparência, mesmo bem tarde na vida, sem notar, por exemplo, que Rhys escrevera que tal interesse era “a verdadeira maldição de Eva”.
Cada capítulo começa com uma citação, que é quase uma prática padrão. Mas Seymour não nos diz que Rhys escrevera, em um diário publicado: “Chega de citações. Paul Morand diz em um de seus livros que os romancistas ingleses sempre começam com uma citação. O texto antes do sermão. Achei bem espirituoso”.
Seymour tem algum material que as biógrafas anteriores não tinham. Mas os detalhes de seu livro são, frase por frase e página por página, menos picantes do que os de Angier – o que as pessoas comiam, o que vestiam. Angier também fez um trabalho melhor ao colocar a ficção ao lado da vida sem confundir as duas.
Rhys tinha uma inteligência singularmente solitária e um talento para enfrentar verdades duras. Se tudo o que você conhece dela é Wide Sargasso Sea, este livro pode encorajar você a se aprofundar. E isso quase – quase – vale o preço.// TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
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I Used to Live Here Once: The Haunted Life of Jean Rhys’
Miranda Seymour
Illustrated – 421 páginas
W.W. Norton & Co. – US $32.50
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times.
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