Rafael Cardoso, carioca de 57 anos hoje radicado em Berlim, viveu a infância nos Estados Unidos com a família, mas fez toda a sua formação acadêmica no Rio de Janeiro. Historiador da arte e do design, é autor do livro Design para um mundo complexo (2016) e, oito anos antes, de A arte brasileira em 25 quadros. Modernidade em Preto e Branco está sendo lançado aqui pela Companhia das Letras (foi originalmente escrito em inglês e publicado pela Cambridge em julho do ano passado). O subtítulo diz muito sobre seu revolucionário significado: Arte e imagem, raça e identidade no Brasil, 1890-1945. “Às vésperas do centenário da Semana de 22”, escreve na Introdução, “o cânone modernista segue tributário de uma narrativa em que as culturas populares e de massa são ignoradas em favor das esferas elitistas de literatura, arquitetura, arte e música eruditas”. Uma frase que tem tudo a ver com a tese do compositor Lívio Tragtenberg em seu livro O que se Ouviu e o que não se Ouviu na Semana de 22, lançado ano passado e disponível em e-book gratuito no portal do Arquivo do Estado de São Paulo.
Afinal, é preciso “investigar a modernização cultural como fenômeno histórico disperso e diverso”, enfatiza com todas as letras neste que talvez seja o livro mais essencial desta superssafra de livros sobre a Semana de 1922. Cardoso admite, em entrevista ao Aliás, que “A Semana permanece importante como mito fundador. As pessoas acreditam nele, e portanto ele existe. Tanto a Semana é importante que estamos aqui discutindo sobre ela. Daqui a cem anos, no bicentenário, nós estaremos esquecidos e as pessoas vão continuar a se interessar pela Semana. Ela é um ponto de aglutinação de pessoas e ideias e discursos. Isso é poderoso”.
Por isso mesmo, provoca controvérsias de todo tipo a cada efeméride. Este raro livro separa o joio do trigo, descarta os franco-atiradores levianos que jogam balões de ensaio pra verem se “pegam”. E se aprofunda em tópicos essenciais na discussão do modernismo brasileiro. “A partir de 1890, uma série de modernismos alternativos se sobrepõe para constituírem juntos um campo ampliado de trocas modernistas”. Põe o dedo na ferida, ampliando para as demais artes o raciocínio certeiro de Tragtenberg: “Os grandes nomes do nosso cânone derivam quase exclusivamente das esferas da literatura, arquitetura, arte e música eruditas, enquanto modernismos alternativos que brotaram da cultura popular e de massa são esquecidos ou ignorados”. Sábias e agudas palavras, que nos ajudam a revirar o modo como enxergamos o fenômeno da Semana de 22 a um século de distância. “Mesmo consagrada por estudiosos e preservada por instituições fundadas em sua memória, a importância da Semana reside principalmente em seu status como lenda”. O preto e branco do título não remete só à questão racial, explica Cardoso: “Tem a ver com raça, sim. Quando se fala de história cultural brasileira, é impossível escapar do escravagismo e suas decorrências. E, por conseguinte, das relações raciais. O ‘preto e branco’ do título tem a ver com o preto e branco dos jornais, da fotografia, do cinema. Tem a ver com a cultura midiática e seu papel no surgimento da modernidade. É o ponto onde a questão racial cruza com as relações de classe social, e me interessa destacar isso”. Ou seja, estamos falando de “outros modernismos alternativos que se sobrepõem para constituírem juntos um campo ampliado de trocas modernistas”. Quais seriam eles? A longa resposta final de Cardoso dá uma ideia da amplitude e pertinência deste livro seminal: “São muitos! Em primeiro lugar, há o "modernismo" de Rubén Darío, poeta nicaragüense que cunhou o termo na década de 1880. Esse foi desprezado por autores de língua inglesa durante muitos anos, pois não queriam admitir que o modernismo existisse em espanhol antes de inglês, francês ou alemão. Mas o modernismo hispânico foi uma vertente vibrante que alterou definitivamente a escrita em língua espanhola.
Se Jorge Luis Borges e Octavio Paz consideravam Darío moderno, o que me importam as classificações de gente que nem lê espanhol? Em segundo lugar, havia um modernismo alternativo nos movimentos ligados ao art nouveau e ao Jugendstil, quase todos derivados do movimento das Artes e Ofícios. Eles tinham uma concepção do moderno engajada em derrubar as estruturas sociais de produção artística. A Bauhaus é muito mais tributária desse modernismo do que de qualquer modernidade literária, baudelaireana. Em terceiro, quarto, quinto e enésimo lugares, há todas as disputas entre as vanguardas históricas. Ninguém concordava com ninguém sobre quase nada. O futurismo era abertamente fascista; o construtivismo era assumidamente comunista. As fórmulas e doutrinas estéticas eram múltiplas. A noção de um modernismo unificado foi inventada a posteriori por figuras como Alfred Barr no MoMA, que reduziu um período de enorme complexidade e turbulência a um diagrama. Esse tipo de visão histórica é capciosa”
Serviço
Modernidade em Preto e Branco
Rafael Cardoso
Companhia das Letras
R$ 99,90 (livro) R$ 39,90 (e-book)
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