M, escritora de meia-idade, constrói com Tony, seu marido, uma espécie de cabana em sua propriedade às margens de um pântano. Com o tempo, o lugar acaba virando uma residência artística e passa a receber pessoas que possam aproveitar o espaço para criar suas obras. Quando um pintor chamado L se hospeda na tal segunda casa, a vida de M entra em combustão. Recorrendo a diversas metáforas relacionadas ao fogo, em um longo relato dirigido a um certo Jeffers, M escrutina todas as suas escolhas afetivas e profissionais, acabando por se enredar uma espiral de obsessões. É este o enredo do primeiro romance de Rachel Cusk após o fenômeno da trilogia Esboço. Segunda Casa foi finalista do International Booker Prize e chega ao Brasil em tradução de Mariana Delfini. Em entrevista realizada por e-mail, a autora canadense radicada na Inglaterra conta que queria representar “a sensação de perplexidade ou desorientação” que acomete as mulheres após o que ela define como “fases grandiosas de encenação e criação femininas”.
Ao longo do livro, fica claro que M está atormentada de modo generalizado. Não apenas o passado é colocado em xeque, mas o presente – envolvendo sua filha e o namorado com pretensões literárias – e, acima de tudo, o futuro. A dinâmica tensionada entre M e L soma-se a um mergulho profundo, permeado por temas como maternidade e a independência das mulheres. Para Rachel Cusk, Segunda Casa é o resultado de uma tentativa de mapeamento do que lhe “parecia ser um terreno muito indefinido, que é a experiência de viver no despertar ou no ‘depois’ da feminilidade ativa”. A escritora conta um pouco mais dessas cartografias, comenta a relação que serviu de inspiração para Segunda Casa e responde à inevitável comparação entre M e Faye, protagonista da famosa trilogia Esboço que muito ouvia e pouco falava.
M, de Segunda Casa, expressa sua complicada vida interior, cheia de dilemas, enquanto Faye, a protagonista da trilogia Esboço, era quase um fantasma para o leitor, vista pelas frestas. Como M surgiu? Foi mais fácil escrevê-la? Acho que usei Faye para definir pela ausência determinados aspectos das adversidades femininas: sua exclusão ou exílio do papel ou espaço femininos permitia questionar que espaço é esse. O que Faye não faria seria “contar”, e contar é um aspecto fundamental da voz feminina. A trilogia é construída ao redor de pessoas contando em vez de narrar, e em relação a M, usei um método semelhante.A trilogia Esboço discutia o papel da arte através da literatura e o ato de escrever. O que te fez mudar para a pintura e as artes visuais para continuar essa investigação? Eu queria expressar aspectos da meia-idade que parecem avançar para além da narração, que impelem a um mistério mais profundo que, na minha cabeça, parecia mais próximo do silêncio e do mistério da imagem. Uma coisa é ver como a literatura e a escrita ampliam e às vezes até deslocam ou convocam nosso senso de realidade, mas o fascínio da imagem e sua relação com o eu é mais complexo.Em Segunda Casa você escreve que “o medo é um hábito como qualquer outro, e os hábitos matam o que é essencial em nós”. Essa frase, de certa forma, encontra eco no que Brett, a acompanhante de L, diz após ver a cabana na mata – “daquelas das histórias de terror”. O próprio caminho do romance nos conduz por uma atmosfera sufocante. Como você pensou essas questões ao longo da escrita, e em que sentido as obsessões de M se relacionam com esse clima? Há um aspecto de drama ou fábula no romance que está relacionado à questão da realidade pessoal na meia-idade, na qual aumenta a sensação de dar vida às coisas, fazer as coisas acontecerem, com as próprias mãos. Então a relação com a realidade objetiva muda, de certa forma de um modo perverso, na medida em que existe um novo sentimento de impotência em relação a acontecimentos e às ações dos outros. Eu queria representar a sensação de perplexidade ou desorientação femininos no que vem “depois” das fases grandiosas de encenação e criação femininas.Ao final da edição original de Segunda Casa, você agradece a “Lorenzo in Taos”, as memórias de Mabel Dodge Luhan, publicadas em 1932, sobre o tempo em que o escritor D.H. Lawrence ficou com ela no Novo México, e você diz que em seu romance a figura de Lawrence é um pintor, não um escritor. Como você conheceu esse livro e como percebeu que era um caminho para um novo trabalho? Na edição brasileira você pediu para o agradecimento ser removido. Por quê? Eu temia que os leitores não tivessem ferramentas suficientes para percorrer o livro se não entendessem sua origem – mas os escritores muitas vezes temem que seus livros não sejam entendidos e pensam que eles precisam ser explicados, e tentar isso é geralmente um erro! Eu estava muito atraída pela ideia de usar as memórias de Mabel Dodge Luhan como um veículo para o que eu queria dizer. Quando deparei com elas, foi muito forte minha sensação de que elas tinham sido descartadas.M batalha com a maternidade e o fato de ser uma mãe com sua própria vida e desejos – assuntos que estão forjando o debate hoje em dia. Que preocupações você teve, em relação a esses temas, quando estava escrevendo M? Eu queria tentar mapear o que me parecia ser um terreno muito indefinido, que é a experiência de viver no despertar ou no “depois” da feminilidade ativa. Me parecia que nessa fase da vida havia grandes revelações, que tinham a ver com o uso biológico que foi feito das mulheres, o que pode dar origem a uma reconsideração fundamental de tudo que já aconteceu e a novos desejos e exigências do futuro.Segunda Casa evoca o tipo de estilo de descrição que fez o leitor quase flutuar na trilogia Esboço – mas aqui você não parece descrever movimentos, e sim pinturas. Que papel a descrição desempenha na sua escrita, e como você aprimorou essa habilidade de modo que fosse quase um personagem dos seus romances? Tenho tentado me aproximar da pintura e da imagem através da linguagem, e o lugar mais óbvio para começar tem sido interrogar a natureza da descrição. Há também questões muito interessantes em relação a como o tempo funciona diferente na pintura, na comparação com a linguagem. Mas também encontrei uma espécie de alívio moral em descrever a natureza, coisas que são não humanas e não relacionais. É difícil, como romancista, encontrar algum acesso ao sublime, por serem tão inquietantes as políticas de ser humano, mas é uma direção que estou determinada a seguir.
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