Ao contrário do que pensava a bobinha Julieta, nome não é irrelevante (uma Montecchio com um Capuleto? Ah, ferrou). Muito menos na literatura, desde os trocentos Buendias de Garcia Márquez ao críptico K, de Kafka. No novo romance de Salman Rushdie, a chave está nos nomes, a começar pelo título: Quichotte.
Além do Cavaleiro da Triste Figura (que aliás era Alonso Quijano), temos aqui a serelepe Salma R (Salman, fala sério!), Sam Duchamp e Ismail. Ora, Maxime Du Camp foi o melhor amigo de Gustave Flaubert (e o primeiro editor de Madame Bovary). E a abertura de Moby Dick cai matando: “Trata-me por Ishmael” (por falar em baleia, em Quichotte também temos um Pinóquio e um grilo). Como lacrou T.S. Eliot, a maior parte da literatura contemporânea é sobre livros. A afinidade entre Dom Quixote e Emma Bovary, por exemplo, não consiste tanto em confundirem seus desejos com a realidade, mas na obstinação desses desejos apesar de tudo – nisso está sua loucura e sua grandeza. Salman Rushdie, claro, mitou em 1989, quando o aiatolá iraniano Khomeini, pistola com o romance Os Versos Satânicos, decretou uma fatwa contra o autor (“fatwas” e congêneres são o sonho de consumo dos atuais canceladores), cuja cabeça foi posta a prêmio por 3 milhões de dólares. Mundo afora, milhares de muçulmanos queimaram o livro, proibido em vários países teocráticos ou pusilânimes. O tradutor japonês do romance foi assassinado, e o editor norueguês, esfaqueado. Durante treze anos, Rushdie viveu clandestino, sob proteção policial e mudando de endereço. E a gente reclama da quarentena pandêmica. Ao menos ele teve o consolo dos seus parças, três dos maiores escritores ingleses desta geração: Christopher Hitchens, Martin Amis e Ian McEwan. Neste romance, quase tudo é metaficção, escrutínio das engrenagens ficcionais: “O autor da narrativa era um escritor de origem indiana que morava em Nova York e havia antes escrito oito livros de espionagem (im)populares sob o pseudônimo de Sam DuChamp. Depois disso, numa mudança de rumo, ele concebera a ideia de contar a história do lunático Quichotte e sua malfadada conquista da senhorita Salma R.” Mais nomenclatura? “Sim, o nome nos livros escondia sua identidade étnica, tal como Freddie Mercury escondia o cantor indiano da etnia parse chamado Farrokh Bulsara.”Quichotte tem mais camadas do que uma cebola tamanho família. O rótulo dessa técnica narrativa é: frame story. É o processo de inserir, dentro de uma história inicial, várias outras mais curtas. Na literatura universal, exemplos clássicos da narrativa em moldura são as Mil e Uma Noites, o Decameron ou Os Contos da Cantuária. Assim, talvez botando demasiada água no feijão, este romance é uma sátira ao trumpismo (sem citar o topetudo cor de burro quando foge), ao Reino Unido, à Índia, ao realismo mágico, aos road novels, à cultura pop. Mas, como diria um abstruso metafísico alemão, tudo é e não é (e é mais ou menos). Incluindo Sancho, que aqui não tem pança e é filho imaginário de Quichotte – o qual, claro, não existe, assim como DuChamp, que porém tem um filho “de verdade”. Planando sobre essa cornucópia verbal, há “o narrador” etéreo e inconfiável, mas que desperta suspeita nos ressabiados personagens: “Tem outra coisa ainda. Bem estranha. Às vezes, quando estou remexendo na minha cabeça, usando as palavras que ele me deu e o conhecimento que me transmitiu, … só às vezes, nem sempre… tenho a estranhíssima sensação de que tem mais alguém aqui. Loucura, né? Isso está me deixando doido. Quem está por baixo, por cima, por toda parte? Quem é você?” Talvez o personagem mais cativante seja Salma R, uma espécie de Oprah Winfrey indiana, bombando como influencer tentacular e – ops! - diretora da CIA. Pirado não por romances de cavalaria, mas por programas de TV excrementícios tipo BBB (pessoalmente, sempre lamento que o tal “paredão” do BBB não seja um verdadeiro paredón cubano), Quichotte parte atrás dessa Dulcineia virtual.Não no pangaré Rocinante, mas num Chevy Cruze estropiado. Menos divertidas são as poucas passagens em que Rushdie faz média e joga pra galera, fustigando os suspeitos de sempre da inquisição woke. A volúpia narrativa às vezes descamba em intemperança verbal. Como quando o autor lista 41 variedades de ronco, uma mais biruta do que a outra: “...o túnel na hora do rush, o Alban Berg, o Schoenberg, o Philip Glass...”. E ele conta muito mais do que mostra, sem falar quando soletra. Na página 356, o irmão explica que em seu livro quer um paralelo com a decadência ambiental, política, social, moral da Terra.” Por exemplo, um mundo com um país em que um homem foi linchado por fanáticos adoradores de vacas, pelo crime de possuir em sua cozinha o que pensaram ser um bife. Excelente – mas, ops, foi precisamente isso que a gente acabou de ler nas 354 páginas anteriores. E, no entanto, este é um romance apaixonante, uma leitura de se lamber os beiços, numa prosa por vezes agridoce e elegíaca, mas quase sempre espirituosa e arguta. Uma bagunça, sim, mas daquelas bagunças tão inebriantes quanto às guerras de travesseiro da nossa infância. No Quixote de Cervantes, a realidade subjetiva sofre um colapso. Aqui, no mundo de Quichotte e no nosso, da realidade cancelada, das fake news, da pós-verdade, de uma epistemologia que não admite nem verdade, nem razão e nem próprio conhecimento, o faz de conta romanesco e a ficção podem ser o último refúgio das convicções. Não como escapismo, ainda que como mimese e entretenimento - mas como um mapa do tesouro para um fantasia que, se não é real, é muito mais verdadeira e benigna do que esses simulacros picaretas e torpes que proliferam por aí. E – putz! - contando a mesma boa & velha história: a de um homem que ama uma mulher e de um pai que ama um filho – e que por eles dará tudo o que tem e apostará até o que não tem. Com o olho maior que a barriga, e talvez por isso mais pantagruélico que quixotesco. Ainda assim, uma maluco beleza.
*Paulo Nogueira é autor de 'O Amor é um Lugar Comum' (Intermeios)
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