“Menos de dez minutos tinham se passado. Não ocorreu a ninguém bater palmas, vaiar ou dizer alguma coisa. Com as luzes ainda apagadas, uma plateia incrivelmente dócil arrastou-se para fora no mais perfeito silêncio” (p. 9). Com essas palavras se encerra o primeiro capítulo de Adeus, Cavalo – o novo livro do artista plástico e escritor paulistano Nuno Ramos, premiado por duas vezes com o prêmio Portugal Telecom (hoje prêmio Oceanos). O dócil público tem lugar central no livro, tanto que ressurgirá, nos capítulos seguintes, sob a denominação “mortos-vivos” ou ainda “os pagantes”. Trata-se, ao fim e ao cabo, de um livro que discute a arte e, assim sendo, o público tem lugar importante na discussão: “um trecho de obra-prima sem ninguém do outro lado para ouvir.” (p. 56)
O velho ator que protagoniza a cena anticlimática inicial e também o livro é um antigo amante de Procópio, amigo de Ungaretti e admirador de Nelson Cavaquinho. Será ele quem trará, ao longo do livro, os três personagens, construídos a partir de três artistas emblemáticos – o ator Procópio Ferreira (1898-1979), o poeta italiano Giuseppe Ungaretti (1888-1970) e o músico Nelson Cavaquinho (1911-1986). Os encontros serão mostrados ao leitor por meio de uma entrevista – gênero tão contemporâneo – oferecida assim que sai de cena, quando perversamente assume o lugar do público, na sua versão atual, a do consumidor: “Sou eu o pagante, agora.” A entrevista, porém, sob a escrita ardilosa de Ramos, torna-se sutil e quase imperceptível, pois as palavras do velho ator, esse cavalo, colocam de fato todos os fantasmas em cena: quem ganha o primeiro plano são as vozes e os gestos dos três artistas.
O resultado é vigoroso: um texto de saborosas cenas, imagens poéticas e discussões sobre o papel do artista, do teatro e do público; tudo isso num cenário distópico. O cruzamento entre o drama, a lírica e o narrativo que compõe o livro remete a um texto tardio de Federico García Lorca, El Público (1930), produzido já sob o impacto do surrealismo e considerado como “teatro irrepresentável”. Lorca, com sua peça, lançava-se sobre as convenções do teatro e do laço estabelecido com o público. Sua peça provocava com um Romeu e Julieta com a atuação de cavalos no papel de Romeu; o diretor, personagem da peça de Lorca, defendia: “Meu teatro será sempre ao ar livre!”, enquanto o público, do outro lado, clamava seu quinhão: “O público quer que o poeta seja arrastado pelos cavalos.”
Os personagens de Nuno Ramos cavalgam também sobre tais temas: nele vemos um Procópio defendendo a ideia de um novo teatro brasileiro: “O TSP, Teatro Sem Plateia, aprisionado no corpo do ator! O TEQP, Teatro Em Qualquer Parte, aprisionado no corpo de qualquer pedinte, esparramado em todos os jornais velhos, colheres tortas, panelas, gambiarras, gestos, adereços.” (p. 38). A posição do ator também é interrogada, no paradoxo entre a solidão do seu corpo no palco e fama pública: “Como puderam uivar e mandar flores a ele, inteiramente isolado na luz branca e coletiva, e ainda oferecer, como compensação, manchetes entusiásticas?” (p. 23)
O belo diálogo de mortos oferecido por Nuno Ramos tem ainda uma dimensão trágica, trazida por Ungaretti, que advoga pela superação do distanciamento brechtiano em nome da identificação catártica dos gregos: “Peças encenadas a cada momento e por toda parte e por quem quer que seja, bicho, gente, pneu. Tudo se parece!, dizia Ungaretti. Tudo se parece com tudo! Não há nada para levar ao palco senão a semelhança!” (p. 39) Busca-se, apaixonadamente, uma linguagem para a arte. O contraponto é dado pelo homem que organiza tais memórias: o velho ator, que tudo narra a partir de um presente de sombras. Difícil não se lembrar do diálogo de mortos perpetrado pelo mexicano Juan Rulfo, em seu romance Pedro Páramo, livro no qual, a certa altura, o leitor se dava conta: desde o começo não sobrevivera ninguém.
O que Nuno Ramos parece colocar em cena é um Brasil no qual tudo já passou, em que até o farsesco realismo mágico de um Ungaretti caminhando sobre as águas da Baía de Guanabara na inauguração, em março de 1974, da Ponte Rio-Niterói – é coisa ida. No presente, o velho ator bebe a água do banho, paga ao repórter para ele abrir suas calças e, ao fim de tudo, espera que ele o embale numa toalha nem tão felpuda, como se faria a um morto. Tudo o que pode ser displicentemente sintetizado numa frase, encontrada já nas páginas finais: “É f... desejar o que é passado” (p. 70). Romance histórico, romance-entrevista ou teatro irrepresentável, Adeus, Cavalo, ao voltar-se ao passado nacional, fala de perto ao Brasil contemporâneo. Por isso é belo e doloroso. Talvez possa purgar nossas paixões. Ou quiçá nem isso.
*Wilson Alves-Bezerra é professor de pós-graduação em estudos de literatura na UFSC
Adeus, Cavalo Autor: Nuno RamosEditora: Iluminuras 80 páginas R$ 38
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.