Hansel é um garoto que sempre viveu dividido. A começar pelo muro que fatiou sua cidade, Berlim, no ano de seu nascimento, 1961. Depois, ao conhecer um soldado americano que o seduziu, foi tomado por uma ambivalência sexual não totalmente resolvida com uma cirurgia: o médico deixou escapar um pedacinho de sua antiga opção, antes de se transformar em Hedwig, deusa do rock. Assim, é sobre a busca incessante do amor e do outro "eu" que trata o musical Hedwig e o Centímetro Enfurecido, que estreia hoje no Teatro Nair Bello."Sempre me pareceu que a busca de Hedwig pela sua outra metade era um erro", comenta Stephen Trask, autor das letras e das músicas, em entrevista por e-mail ao Estado. "Tanto que, só ao final, ela vive a plenitude na busca de expressão de arte e de si mesma." Trask está em São Paulo para acompanhar a versão brasileira da peça. Trata-se de mais uma etapa da longa carreira de um musical que ainda continua a surpreender.Hedwig estreou no circuito off Broadway em 1997 e trazia os anseios pessoais de Trask e John Cameron Mitchell, cineasta (Shortbus) que escreveu a história. Influenciada por conceitos filosóficos (especialmente os apontados por Platão em O Banquete), a dupla utilizou todas as vertentes do rock para mostrar a trajetória de Hedwig - vivida no palco por Pierre Baitelli e uma exuberante peruca loira - e sua outra busca, a do sucesso. Abandonada pelo oficial americano, que não admitiu o centímetro de masculinidade restante, ela começa a trabalhar com música e se apaixona por Tommy Speck. Esse, porém, revela-se um larápio e rouba suas canções, tornando-se um enorme sucesso. Sobra a Hedwig brigar na justiça e iniciar uma eterna perseguição: enquanto Tommy se apresenta em grandes estádios, ela faz seu show em decadentes restaurantes próximos.Lançado na mesma época que Rent, outro musical de sucesso, Hedwig logo tornou-se uma espécie de The Rocky Horror Picture Show, com o público decorando as letras e cantando durante o espetáculo."Meu gosto pessoal determinou o estilo da letra e os maneirismos de Hedwig", conta Trask. "Eu a imaginava como uma autêntica fã de rock"n"roll, em todas suas formas: punk, garage, Glam, new wave, anos 50 e 60, alternativo. Enquanto crescia, Hansel colecionava discos, como eu fazia. E também o John. Assim, eu pretendia que a música refletisse a urgência desse período. Há pedaços de Cole Porter, Henry Mancini e Burt Bacharach espalhados pela música. Liricamente, eu me inspirei em um grupo especial: Lou Reed, John Lennon, Cole Porter, Chuck Berry e também alguma poesia contemporânea. E ainda há uma influência Dr. Seuss, em Origin of Love."Trask e Mitchell levaram Hedwig para o cinema em 2001, com o cineasta vivendo o papel principal e o autor da música como um membro da banda. O filme segue à risca o musical ao apresentar a odisseia de um rock pós-punk e neo Glam, mantendo a mesma urgência da musa inspiradora da dupla, a comediante Sandra Bernhard, famosa pelo sarcasmo e a veia humorística. "Hedwig ainda é fora do comum", acredita Trask. "Pois foi capaz de influenciar outros musicais, como Despertar da Primavera, Jersey Boys, Passing Strange. Certamente, pavimentamos o caminho até a Broadway para esses espetáculos."O Hedwig nacional tem a direção de Evandro Mesquita, autor também da adaptação ao lado de Jonas Calmon Klabin. Estreou no Rio no ano passado e foi indicado ao Prêmio Shell.QUEM É STEPHEN TRASKMÚSICO E COMPOSITORNasceu nos Estados Unidos em 1967. Sua banda Cheater acompanha Hedwig, tanto na versão do palco como na do cinema. Trask recebeu o prêmo Obie pelo musical. Compôs também a trilha do longa Entrando Numa Fria Maior Ainda com a Família. Ele adotou o sobrenome do namorado pois Stephen Schwartz, seu nome original, é o mesmo do compositor de Godspell e Pippin. HEDWIG E O CENTÍMETRO ENFURECIDOTeatro Nair Bello. R. Frei Caneca, 569, tel. 3472-2414. 6ª, 21h30; sáb., 21h; dom., 18h. R$ 60
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