Dante Alighieri (1265-1321) é conhecido mundialmente por ter escrito a famosa Commedia, apelidada depois de “divina” por ninguém menos que Boccaccio (o autor do Decameron), além de ter sido um dos mais inveterados amantes de todos os tempos. Não porque fosse um fornicador compulsivo como Giacomo Casanova – longe disso –, mas sim porque foi também um dos poucos homens que ousou colocar o Amor (em maiúsculo mesmo) numa espécie de pedestal quase inatingível para nós, pobres mortais, e que foi simbolizado na visão que teve ao conhecer a donzela Beatrice Portinari.
Ele a encontrou três vezes na vida: a primeira aos nove anos de idade, a segunda aos dezoito e a terceira três meses antes dela morrer prematuramente. Beatriz era esposa de outro homem e é certo que Dante nunca teve um contato íntimo com ela. Mas foi por sua causa que ele escreveu um singelo livrinho, o qual anunciava a vita nuova que sentiu ao ter a presença desta “dama gentil” no seu íntimo, além de rimas magistrais e, claro, da Commedia. Foi sua tentativa de, como o próprio escreveu, “se aprouver Àquele por quem todas as coisas vivem, que minha vida dure mais alguns anos, e espero dizer dela o que nunca se disse de nenhuma”.
Ao mesmo tempo em que o jovem poeta sofreu esse golpe do destino na sua vida sentimental, ele sofreria outro na pública. Filho dileto de Florença, envolveu-se com a casta dos brancos, ex-guelfos que queriam o Poder através da burguesia incipiente e não apoiavam o envolvimento da Igreja nos assuntos do Estado. Quando a facção rival — os negros, também ex-guelfos, mas aliados à Igreja, ao papado de Avignon e ao reino francês — invadiu Florença e expulsou os brancos com um anúncio geral de degredo, Dante estava entre os escolhidos. Assim, foi um estrangeiro durante anos e anos, passando frio e fome, mas nunca parou de se aprimorar, de deixar os estudos. De fato, é nessa época que o exílio parece lhe dar uma forma definitiva em seus escritos. É o seu período mais produtivo, pois, além da Commedia e de suas rimas, escreve tomos filosóficos sobre diversos assuntos, que vão da política à lingüística, como Da Monarchia, Il Convivio e De Vulgari Eloquentia — mas é também quando sua alma fica cada vez mais atormentada, sentindo o drama de sua vida com tamanha agudeza, que não há outra maneira de ver a sua situação senão compará-la semelhante ao próprio inferno.
É nesta “temporada” no seu Hades terreno e emocional que Dante produz o Convívio, publicado recentemente no Brasil numa edição primorosa com tradução, introdução e notas de Emanuel França de Brito, lançada pela Companhia das Letras (470 páginas, R$ 49,90). É um livro inacabado, infelizmente, com apenas quatro grandes tratados escritos, mas é o suficiente para entendermos o que se passava na mente do poeta do dolce stilo nuovo. Neste caso específico, o luto prolongado – acentuado ainda mais por viver um exílio considerado “injusto” – o levou a substituir a dama Beatrice por outra musa, a Filosofia, satisfazendo-se dela (e nela) por algum tempo.
Provavelmente escrito entre os anos 1303 e 1309, o Convívio – o título é uma referência ao Symposium de Platão, o diálogo filosófico por excelência – é o relato deste novo caso de amor que Dante teve com sua nova “dama gentil”. É certo que Beatrice Portinari não é abandonada para sempre, mas, desta vez, o poeta prefere a Filosofia porque esta última lhe daria uma certa “paz de espírito” que o desterro jamais conseguiria oferecer. Afinal, o próprio descreve sua situação miserável ao afirmar que foi um “peregrino”, um “barco sem vela e sem governo, levado a vários portos, fozes e praias pelo vento seco que exala a dolorosa pobreza”. Nesta busca por um conhecimento que aplaque a sua ferida, o conhecimento desvelado pela Filosofia, exposto no Convívio, parece-lhe ser o único caminho.
Contudo, ninguém sabe porque o tratado ficou inconcluso. Alguns estudiosos afirmam que foram as contingências da vida; outros argumentam que, ao perceber que a “salvação pela filosofia” não levaria ao Paraíso que tanto procurava e onde enfim reencontraria a saudosa Beatrice, o poeta largou o manuscrito e finalmente começou a se preparar para a grande obra da sua existência – a Commedia. Neste grande épico que faz a transição do final da Idade Média para o surgimento do Renascimento humanista, Dante medita sobre qual é a natureza do verdadeiro Amor que, no fim, aproximaria o ser humano da visão plena de Deus – e também qual seria a linguagem adequada para exprimir esse tipo de experiência incrivelmente complexa. Como diria Erich Auerbach, toda a poesia dantesca é uma longa e única visão – e seus escritos, mesmos os de filosofia, de política e de estilística, formam uma unidade integral, cujo centro é a possibilidade de articular, por meio de símbolos, a vivência concreta do invisível que encontramos no visível.
Nesse sentido, o Convívio pode ser lido como uma parte importante desta visão, pois também deve ser compreendido como o registro de um nobre fracasso. O adjetivo “nobre” é usado aqui porque, antes que a sua busca terminasse em desilusão completa, Dante reconheceu, durante a sua vida, o seu desvio nessas delícias intelectuais que quase o colocaram na pior de todas as mortes – a morte na vida, a que o faria perder a voz da liberdade interior e desvirtuaria qualquer espécie de desígnio divino.
Mas, justamente por ser um “peregrino do ser”, o poeta decide pelo caminho oposto, enfrenta o seu inferno particular, conquista o purgatório das almas semelhantes à sua e enfim entra no Paraíso de mãos dadas com Beatrice, atingindo o cume de sua trajetória na Commedia, algo que jamais seria conquistado se realmente confiasse no que escreveu no Convívio. Portanto, resta-lhe apenas cumprir aquilo que, a seu ver, a Providência sempre quis que fizesse: ser o portador de uma mensagem de perseverança no exílio que é a Terra. Ao reencontrar-se com a beatitude de Deus, a sua personalidade está plena, acabada, em constante harmonia com o Uno. E então, graças a este feito do poeta florentino, o gênero humano sempre olhará para a Criação com novos olhos e ver que não são os nossos caprichos, nossas sombras ou a nossa vã Filosofia que nos orienta, mas sim o Amor puro e intocável – a quem Dante Alighieri foi fiel servidor, mesmo nos momentos mais obscuros da sua vida.
*Martim Vasques da Cunha é autor dos livros Crise e Utopia – O Dilema de Thomas More (Vide Editorial, 2012) e A Poeira da Glória – Uma (inesperada) história da literatura brasileira (Record, 2015)
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