Dante, Gil Vicente, Goethe, Gógol, Dostoiévski, Baudelaire, Machado de Assis, Bulgákov, Brecht, Guimarães Rosa, ou Mick Jagger – não poucos se inspiraram no Príncipe das Trevas e a sua vasta sua corte. Pois esta legião invade as livrarias com o Dicionário Infernal: Repertório Universal, de Jacques Auguste Simon Collin de Plancy (1794-1881) em tradução de Angela Gasperin Martinazzo e coeditado por Edusp, UNB e Arquivo Nacional.
O intertítulo promete e entrega: Dos Seres, Personagens, dos Livros, dos Fatos e Coisas que Concernem aos Espíritos, aos Demônios, aos Feiticeiros, ao Comércio do Inferno, às Adivinhações, aos Malefícios, à Cabala e Outras Ciências Ocultas, aos Prodígios, às Imposturas, às Superstições e as Previsões, aos Fatos Atuais do Espiritismo e de Modo Geral a Todas as Falsas Crenças Fantasiosas, Surpreendentes, Misteriosas e Sobrenaturais.
Como o próprio autor apresentou em prefácio à edição de 1963, “reproduz os aspectos mais estranhos das evoluções da mente humana; expõe tudo o que diz respeito a espíritos, duendes, fadas, gênios, demônios, espectros e fantasmas, feiticeiros e seus feitiços malignos, o prestígio dos encantadores, a nomenclatura e funções de demônios e mágicos, tradições supersticiosas, narrativas fatos sobrenaturais, contos, populares”. Serve-se de contos populares das mais variadas partes do mundo até estudos específicos sobre adivinhações, astrologia, alquimia, cabala, magnetismo entre outras.
Um dos verbetes maiores é sobre o Sabá, “assembleia dos demônios, dos bruxos e das bruxas em orgias noturnas”. Já a entrada Hierarquia reporta o inventário da monarquia de Satã, com aproximadamente 72 príncipes e vários milhões de diabos. Também são objetos de atenção determinados elementos materiais de forte carga simbólica, como dinheiro, amuleto, almanaque, livros e sinos. Popular no recente noticiário político brasileiro, a hiena é definida como “os egípcios acreditavam que a hiena mudava de sexo a cada ano. Dava-se o nome de pedras de hiena a certas pedras que, no relato de Plínio, se encontravam no corpo da hiena, que, colocada sob a língua, atribui à pessoa o dom de prever o futuro.”
Personagens históricos não escapam da lupa de Plancy ao se refere a João de Leiden, líder de revolta de Münster (Holanda, século 16), ao fundar república comunista e social com constituição “estapafúrdia” e religião própria. Acredita-se que durante seu reinado possuísse vários demônios a quem serviu, desposou 16 mulheres e assassinou todos os opositores. Ou ainda Ricardo Coração de Leão ao ser acusado de relações com o diabo, versão atribuída aos protestantes, “como fazem em geral com todos os heróis do catolicismo”.
A ligação direta entre os ideais do Iluminismo e o velho mundo da magia e da superstição de onde surgiram esses demônios foi imantada pela figura peculiar de Plancy. Ele nasceu em 1793, apenas quatro anos após a Revolução Francesa. Talvez por isso acrescentasse o aristocrático “de Plancy” ao seu nome plebeu. O autor era originalmente um partidário de liberdade, igualdade e fraternidade, tipógrafo e editor, leitor entusiasmado de Voltaire. O racionalista e cético zeloso se reconciliou com a igreja antes rejeitada, embora com desvio pelo submundo mais sombrio da demonologia. Ele antecipou as visões dos poetas simbolistas e decadentes de geração posterior – Rimbaud, Baudelaire e Verlaine. Apesar de ter escrito várias obras, Plancy ficou irremediavelmente associado a este dicionário.
Como explica Ana Alethéa de Melo Cesar Osório, pesquisadora da UNB, em seu esclarecedor estudo introdutório, a presente versão brasileira foi traduzida a partir da sexta e final publicada em 1863 trazendo 550 figuras, além de 69 gravuras de Louis Breton apresentando os demônios da hierarquia infernal como eram descritos em antigos grimórios medievais – coleções medievais de feitiços, rituais e encantamentos mágicos atribuídos a fontes clássicas hebraicas ou egípcias – o que tornou o dicionário ainda mais conhecido.
Plancy não apenas se convenceu de que os demônios eram reais, mas desenvolveu um desejo de controlá-los através da linguagem, um desejo tão fervoroso quanto o de seus antepassados iluministas de categorizar e definir palavras e ideias em dicionários e enciclopédias. O demonologista era tomado entre lógica e fé, ouvia os gritos de monstros horríveis enquanto escrevia com a caneta sóbria de naturalista. Este lançamento mostra-se importante contribuição para as mais variadas áreas de Ciências Humanas como sólida obra de referência e mesmo para os leitores vivamente interessados em trânsito de ideias ou cultura popular de tempos e lugares dos mais variados, não apenas europeu.*GUTEMBERG MEDEIROS É PROFESSOR, JORNALISTA E PÓS-DOUTORANDO NA ECA/USP
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