Chega à quinta edição o romance O Idiota (1869), do russo Dostoievski (1821-1881), que, para fugir de seus muitos credores – à época, a Rússia levava os inadimplentes ao cárcere –, escreveu a obra no exterior (em Florença). A predileção de Dostoievski por O Idiota se vinculava à criação do protagonista, o príncipe Míchkin, um homem em cujo caráter e em cujas ações o autor procurou projetar a mais rematada bondade.
Quando pensamos em tipos predominantemente maus e cínicos, a literatura (e a história humana) nos apresenta(m) um rol interminável de personagens: do elitista Brás Cubas (Memórias Póstumas de Brás Cubas), de Machado de Assis, ao inescrupuloso Paulo Honório (Vidas Secas), passando pelo niilista e pedófilo Nikolai Stavróguin (Os Demônios), do próprio Dostoievski. Mesmo quando pensamos em tipos inicialmente ingênuos e idealistas, a literatura (e a vida) se encarrega(m) de submeter o otimismo à decrepitude das ilusões perdidas, como acaba acontecendo com o jovem Cândido (Cândido ou o Otimismo), de Voltaire, e com o aspirante a escritor Lucien de Rubempré (Ilusões Perdidas), de Honoré de Balzac. Entretanto, quando pensamos em tipos sumamente bons, a galeria de personagens se torna bem mais escassa. Mesmo com o ar rarefeito do cume da bondade, Dostoievski se propôs o desafio de imaginar uma personagem essencialmente fraterna, que, em seu caráter e em suas ações, realizasse uma síntese entre o oferecimento da outra face, pregado por Cristo, e o nobre idealismo de Dom Quixote, o cavaleiro imortalizado por Cervantes. É assim que a alcunha de idiota para Míchkin relaciona-se não apenas aos ataques de epilepsia – doença que também acometia Dostoievski –, mas ao fato de haver uma inadequação existencial entre uma personagem que procura agir com bondade e retidão e os demais personagens espertalhões, incrédulos e malévolos, com os quais o príncipe entra em contato. A idiotia de Míchkin, então, dá o tom não para uma limitação do protagonista, mas para a vida lamentável de seus convivas, para os quais a mão estendida para a amizade e o amor só pode parecer o ludibrio sob o qual se escondem e se esgueiram rasteiras furtivas. Desde os primeiros momentos do romance, o príncipe Míchkin depara com sua personagem mais antípoda, o materialista voraz e niilista Rogójin. Na mesma cabine de um trem que retorna da Europa para a Rússia – ainda que o território russo esteja, em parte, na Europa, a história política e intelectual do país é transpassada pela vontade, pelo ressentimento e pelo revanchismo de (não) fazer parte inequívoca da civilização ocidental –, Míchkin e Rogójin acabam falando sobre Nastácia Filíppovna, uma das mulheres mais impetuosas e belas da obra de Dostoiévski. Num arroubo ardente de desejo e ciúme bem próprio às personagens dostoievskianas, Rogójin revela a Míchkin que, se Nastácia se tornasse sua amante, ele poderia matá-la de tanta entrega, como se o cadáver pálido de seu amor jamais pudesse abandoná-lo. Consternado, Míchkin ouve tal confissão sem julgar Rogójin, como se Dostoievski vestisse o cordeiro com a pele do lobo e transformasse o príncipe em um cúmplice do potencial assassinato de Nastácia. Nastácia Filíppovna fora, desde nova, conduzida ao assim chamado “chalé das delícias” pelo aristocrata e lascivo Totski, que a sustentou e a educou na mesma medida criminosa em que a aliciou. Como também tende a acontecer com muitas personagens de Dostoievski, o amor-próprio de Nastácia é içado (e incendiado) na mesma (des)medida em que a jovem beldade expõe sua ignomínia em público e escarafuncha as próprias feridas. Para Nastácia, narcisismo e síndrome de Estocolmo, prazer e autoflagelação são grades da mesma masmorra de que ela (não) quer se desvencilhar. Em uma imagem sumamente dostoievskiana – e como prima mais jovem porém nada distante do atormentado homem do subsolo, o (anti)herói da novela Memórias do Subsolo –, Nastácia é a cativa e a carcereira, a condenada e o algoz da própria tragédia. Quando o príncipe Míchkin depara com o retrato de Nastácia pela primeira vez, uma máxima que lhe é atribuída (“A beleza salvará o mundo”) parece irromper como um raio em céu azul. Em russo, as palavras beleza (krassotá) e vermelho (krasny) têm o mesmo radical, como galhos de uma mesma árvore em que estética e ética, poesia e redenção se fundem, já que o vermelho é a cor da ortodoxia cristã, a cor das muralhas do Kremlin e a cor que dá nome e sentido à praça Vermelha, no coração de Moscou – na Rússia, religião (ou propaganda) e Estado se fundem e se confundem, com ou sem Deus. Assim, ao contemplar o retrato de Nastácia com desejo e compaixão – mais um acorde paradoxal em meio às dissonâncias de Dostoievski –, Míchkin sente que “esse rosto, incomum pela beleza e por alguma outra coisa, agora o impressionava ainda mais. Era como se nesse rosto houvesse uma altivez sem fim e um desprezo, quase ódio, e ao mesmo tempo algo crédulo, algo surpreendentemente simplório; esses dois contrastes excitavam como que até uma certa compaixão quando se olhavam aqueles traços. Aquela beleza estonteante era inclusive insuportável, era a beleza de um rosto pálido, de faces levemente caídas e olhos de fogo; estranha beleza! O príncipe ficou olhando cerca de um minuto, súbito se deu conta, olhou ao redor, chegou apressadamente o retrato aos lábios e o beijou”. O desenrolar do romance faz com que Nastácia tenha que escolher entre o ninho de amor e aconchego do cordeiro Míchkin e o ninho de víboras (o precipício) do lobo Rogójin. Com seu amor, Míchkin quer fazer com que Nastácia (se) perdoe, Míchkin quer redimi-la. Com seu furor, Rogójin quer fazer com que Nastácia se afogue ainda mais, Rogójin quer inundá-la. Como a história humana é pródiga (e sádica) em nos ensinar, a dor que conhecemos e com a qual convivemos há bastante tempo já não desponta como nossa carcereira, já que ela mais parece nossa conselheira. “Ruim comigo, pior sem mim”. Assim, indivíduos (e coletividades) não poucas vezes optam pelo caminho do autoflagelo – o discurso da servidão voluntária sobre o qual nos falou o pensador francês Étienne de La Boétie – como uma trilha que, mesmo sendo aterradora, ainda assim traz menos medo do que a indômita e incerta liberdade. [Não à toa, o grande inquisidor, personagem emblemática do romance Os Irmãos Karamázov (1880), viria a sentenciar que não há angústia maior para o homem do que encontrar alguém diante de quem ele possa se ajoelhar.] Nastácia, ao fim, se entrega ao covil de Rogójin. Quando Rogójin a esfaqueia, o príncipe Míchkin, como um rematado cristão quixotesco, fica entre a cruz e a espada: como conciliar o perdão ao assassino de sua amada com a devida justiça para com a vítima desde sempre tão aviltada? Se Míchkin condenar o algoz Rogójin, o príncipe não lhe oferecerá a outra face. Se Míchkin inocentar o algoz Rogójin, o príncipe pisará sobre a face injustiçada de Nastácia. Ora, que fazer? Como se procedesse à imitação do calvário de Cristo, Dostoievski leva Míchkin à loucura, como se a personagem oferecesse sua própria razão em holocausto para não optar entre o iníquo e a vítima, ambos dignos de redenção. Com o trágico desenlace para Nastácia, O Idiota nos faz perguntar ao príncipe (e cúmplice) Míchkin: você afirma que a beleza salvará o mundo, príncipe. Mas e quanto ao mundo – o mundo salvará a beleza?*FLÁVIO RICARDO VASSOLER É ESCRITOR E PROFESSOR, AUTOR DE ‘DIÁRIO DE UM ESCRITOR NA RÚSSIA’ (HEDRA, 2019).
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