O presente de Tomie: casa da artista plástica no Campo Belo deve se tornar centro cultural

A artista plástica nipo-brasileira Tomie Ohtake morreu há um ano e meio. Mas, ao entrar na casa onde morou por 45 anos, a impressão é de que ela ainda está ali: não só pelos frascos de tinta intactos no ateliê, mas também pelas memórias de visitas ilustres, de Yoko Ono a José Saramago, preservadas por filhos e funcionários. Se depender deles, as marcas permanecerão – o plano é fazer do lugar um centro cultural

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É uma casa toda de presenças, aquela de concreto erguida no fim dos anos 1960 na Rua Antônio de Macedo Soares, no Campo Belo, zona sul de São Paulo. A integração está nos espaços, na falta de paredes. Mas também nos convivas. José, o escritor Saramago, jantou ali. Oscar, o arquiteto Niemeyer, também – não só uma, mas diversas vezes. Haroldo de Campos, o poeta; Walter Salles, o cineasta; Robert Wilson, o dramaturgo; Jacques Herzog, o arquiteto... “E esta planta aqui no jardim foi presente do Burle para minha mãe”, conta o arquiteto e designer Ricardo Ohtake, apontando para uma bromélia. Burle, no caso, é o arquiteto e paisagista Burle Marx.

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Mas se é uma casa toda de presenças, é preciso falar logo da mais intensa delas: Tomie Ohtake. A consagrada artista plástica viveu na casa de 1970, quando a construção ficou pronta, até sua morte, em fevereiro de 2015, aos 101 anos. Um ano e meio depois, nada foi tirado do lugar. A coleção de pincéis permanece sobre a bancada. Os frascos de tinta – umas cores pela metade, outras quase acabando – persistem desafiando o tempo e suas datas de vencimento. No alto da parede do imenso cômodo de mais de 300 metros quadrados utilizado como ateliê, pequenos quadros são estudos, esboços de trabalhos que nunca foram desenvolvidos. “Ela vai pintando e colocando aí”, diz Ricardo, assim, conjugando no presente – deve ser difícil para um filho se referir à mãe no passado.

Na outra parede, há obras de arte de colegas que se tornaram amigos. Uma das telas é de Yoko Ono, a viúva mais famosa do mundo. “Ela esteve duas vezes aqui. Havia a intenção de criarem uma obra em conjunto. Fizeram até uns estudos”, conta a jornalista Marcy Junqueira, mulher de Ricardo. Também estão dependurados um quadro de Keisuke Sugano – o mestre de Tomie –, outro de Alfredo Volpi. (Quando o jornalista e escritor Miguel de Almeida perguntou à Tomie qual artista ela considerava exemplar, a resposta foi simplesmente: “É o Alfredo Volpi”.)

Um tanto desalinhada na mesma parede, pendendo mais para um lado do que para o outro do cabide, chama a atenção uma camiseta da seleção brasileira. Nas costas, o número 9. Acima, em vez de nome de jogador, é TOMIE que está escrito. Presente do amigo Ayao Okamoto, artista plástico. A artista não ligava muito para futebol. A quem perguntava, dizia que deixava a amarelinha ali porque achava “engraçada”.

  Foto: AMANDA PEROBELLI | ESTADAO CONTEUDO

Nos demais cômodos, também tudo como ela deixou. Ao redor da piscina, esculturas de Amílcar de Castro, José Resende, Nobuo Mitsunashi, Yutaka Toyota – além de trabalhos dela mesma. Foi ali que, em uma de suas visitas, em 1985, o dançarino japonês Kazuo Ohno dançou durante meia hora para um público de menos de 50 pessoas.

O outro ateliê da casa, de cerca de 70 metros quadrados, já não era mais utilizado por Tomie para produzir – havia sido transformado em uma espécie de reserva técnica. Sobre a bancada central, miniaturas perfeitas de muitas de suas esculturas públicas – está lá, por exemplo, uma versão “de mesa” do Monumento à Imigração Japonesa, inaugurado em 1988 na Avenida 23 de Maio. Algumas obras, confidencia Ricardo, jamais foram executadas. “Ela vai fazendo e deixando aqui. De vez em quando alguém pede... Então pode ser que ainda se transformem em monumentos públicos”, afirma o filho, novamente usando os verbos no presente.

Os três quartos principais da casa são minúsculos. “Quartos-cela”, define o outro filho, Ruy Ohtake, de cuja prancheta saiu todo o projeto, das paredes ao mobiliário. “Só o necessário para dormir. Todas as atividades ficam para áreas de convivência da casa.” Os dois que eram ocupados pelos filhos são idênticos e medem pouco mais de 3 metros quadrados cada. O da Tomie, ao fundo, é um pouco maior. No vazio e no silêncio, uma imagem persiste na cabeceira de sua cama. O retrato em preto e branco de sua mãe, Kimi Nakakubo.

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Tomie nasceu em Kyoto, no Japão, e emigrou para o Brasil em 1936, antes de completar 23 anos. Aqui, casou-se com o também imigrante japonês Ushio Ohtake, engenheiro agrônomo, com quem teve seus dois filhos: Ruy, nascido em 1938, e Ricardo, de 1942.

A família morava na Mooca, zona leste da cidade, até os anos 1960. Tomie começou a pintar já na maturidade, quando tinha quase 40 anos. “Seu ateliê era improvisado, na cozinha de casa. Não media nem 10 metros quadrados”, recorda-se Ricardo. Quando os Ohtake decidiram que era hora de mudar, encontraram um amplo terreno disponível no Campo Belo. A Ruy, então um jovem arquiteto promissor, coube a tarefa de projetar a residência, em 1966.

“Ter minha mãe como cliente foi facílimo por um lado: ela deu total liberdade”, conta ele. “Mas, também por causa disso, foi muito difícil. Quando o cliente age assim, aumenta a nossa responsabilidade.” A única exigência da mãe foi que o seu ateliê contasse com uma boa iluminação natural.

Ruy desenhou de acordo com seu estilo. De sua prancheta, a brutalista arquitetura paulistana do concreto se tornou uma ode aos espaços vazios e integrados. “No fundo, a casa foi uma pesquisa forte que eu fiz. Piso, teto e móveis principais são de concreto: isso é uma posição de partido de casa para aquela época”, autoanalisa. “Fui muito rigoroso no que diz respeito aos materiais.”

  Foto: AMANDA PEROBELLI | ESTADAO CONTEUDO

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Em cada traço, o arquiteto preocupava-se com um conceito: a casa da Tomie não era apenas para morar. Casa e ateliê, moradia e trabalho. “Acho interessante pensar nisso. Então a atenção fundamental foi para a atividade de minha mãe”, comenta.

A casa nasceu uma galeria pronta para realçar obras de Tomie. Concluída em 1970, acabou premiada no ano seguinte pelo Instituto de Arquitetos do Brasil. Passaria ainda por duas ampliações, uma nos anos 1980, outra nos anos 1990, até chegar aos atuais 1,2 mil metros quadrados. Em fevereiro de 2014, um ano antes da morte de Tomie, a casa recebeu outro reconhecimento: desta vez do Conpresp, o órgão municipal de proteção ao patrimônio. Desde então, o imóvel é tombado.

“Claro que ficamos orgulhosos quando soubemos da decisão”, diz Ricardo. “Obviamente que essa proteção, em nosso caso, não muda nada. Afinal, não seria nosso plano demolir a casa.” Ruy, por sua vez, prefere pensar no tombamento não apenas do que desenhou, mas da vida que existiu ali. “Certamente há um sentido afetivo nesta obra, mais do que em qualquer outra”, comenta. “Assim, não é só o instrumento de tombamento que serve para manter a casa. Acredito que o tombamento se enriquece quando, além das paredes e dos espaços, a vivência também é preservada. No caso de minha mãe, vivência significa o ateliê: os pincéis, os estudos, os seus quadrinhos pequenos na parede. É isso que dava vida para a casa.”

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Para os Ohtake, importante é ter gente, sempre. “A gente faz questão de que a casa não esteja nunca sem ninguém”, afirma Ricardo. Daí a decisão de, mesmo com a morte de Tomie, manter os três funcionários. Entre sorridentes e tímidas, as irmãs Rosa Maria e Jane, ambas dos Santos Lima, arrumam serviço: limpam daqui, espanam acolá, não param e não deixam os cômodos parecerem vazios – trabalham para a família respectivamente há 12 e há 15 anos. José Carlos, taciturno a ponto de se negar a dizer o sobrenome, foi contratado como motorista há 15 anos e acabou promovido a faz-tudo. “De eletricista a consertos gerais”, propagandeia Ricardo. “Faço o que posso”, resume o funcionário.

Ricardo também contribui com sua parte no esforço de manter a casa habitada. Mora ali umas três vezes por semana – revezando-se entre o Campo Belo e o apartamento da mulher, no Real Parque, também na zona sul paulistana.

Enquanto isso, os irmãos Ohtake vão amadurecendo um sonho que já se torna projeto. Querem transformar a casa em um museu, em um centro cultural dedicado às artes plásticas e, sobretudo, à memória e ao trabalho de Tomie. Seria um destino perfeito para que a casa volte a ser de presenças, constantes e diversas. Também resolveria uma questão: a demanda de pesquisadores que solicitam acesso ao acervo da artista – o que, atualmente, é feito caso a caso, sem uma estrutura profissional. Pelas contas de Ricardo, desde que a artista morreu, três foram autorizados a remexer as gavetas e armários da casa: dois acadêmicos e um curioso. “É que ninguém sabe. Quando abrirmos mesmo, quando anunciarmos que pesquisadores são bem-vindos...”, vislumbra.

“Precisamos conseguir viabilizar esse projeto de uma maneira sustentável, inclusive financeiramente”, diz. Ainda não há estimativa de quanto custaria a implementação. Ideias não faltam. A programação poderia ter oficina de artes plásticas para crianças, por exemplo. Pequenas exposições. Apresentações intimistas. A biblioteca de Tomie, com cerca de 5 mil títulos – na maioria de literatura e arte. Eventuais jantares culturais, por que não? “Será ‘A Casa da Tomie’. O nome já é consenso”, diz Ruy.

Será, não. A residência sempre foi a casa da Tomie, nunca deixou de ser a casa da Tomie.

  Foto: TIAGO QUEIROZ | ESTADÃO CONTEÚDO