O que o autor de 'Duna' diria sobre as mudanças climáticas? Seu filho tem um palpite

Após expandir o universo ficcional do pai em mais de dez romances, Brian Herbert lança quadrinho que adapta o romance original de Frank Herbert

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Desde que o escritor norte-americano Frank Herbert publicou o caudaloso romance Duna, em 1965, seu universo fictício não parou de fascinar leitores e de se expandir, suscitando sequências e releituras. A mais nova é uma graphic novel em três volumes que começou a ser publicada no Brasil pela Intrínseca no mesmo ano em que a Aleph conclui a reedição da saga original com As Herdeiras de Duna e o diretor canadense Denis Villeneuve lança a mais nova versão da obra no cinema.

Cena do primeiro volume da graphic novel de 'Duna' Foto: Raúl Allén e Patricia Martin/Intrínseca

A HQ é fruto de uma parceria dos escritores Brian Herbert, filho do autor, e Kevin J. Anderson, com ilustrações de Raúl Allén e Patricia Martín. Esta não é a primeira vez que Brian revisita o universo ficcional criado por seu pai: ele já escreveu mais de dez romances que expandem Duna. Agora ele se volta para o romance original a fim de transportá-lo para a linguagem dos quadrinhos. A obra narra a disputa palaciana entre duas famílias nobres, os Atreides e os Harkonnen. Aqueles são governantes de um planeta paradisíaco, Caladan, enquanto estes são os mandachuvas do desértico Arrakis, também conhecido como Duna. É desse mundo desolado que se extrai o mélange, uma especiaria fundamental para a economia galáctica. A metáfora do petróleo vindo das areias da Arábia fica ainda mais contundente quando se pensa que Duna antecipou as sucessivas crises do petróleo dos anos 1970. Em meio à cisão política entre os aristocratas, o jovem Paul Atreides se vê forçado ao exílio no deserto de Arrakis e é acolhido em meio ao povo fremen, uma tribo tradicional do deserto. Após aprender seus costumes e compreender como sobreviver em Duna, o rapaz inicia uma jornada messiânica, unindo crenças religiosas dos fremen e desígnios e profecias milenares de outras ordens sacerdotais da galáxia.

A atrizSharon Duncan-Brewster interpreta Liet, que é um homem no romance Foto: Warner Bros. Pictures

Uma das primeiras inspirações de Herbert foi um problema ambiental relacionado às dunas do estado norte-americano do Oregon, onde uma espécie plantada para manter a areia longe da cidade de Florence estava desequilibrando todo o bioma e saindo de controle – situação que até hoje ainda não foi solucionada. Em Duna e nos livros subsequentes, há um plano ambicioso para alterar a face do planeta, transformando o deserto em um grande oásis. 

Se Frank Herbert estivesse vivo hoje, ele veria os benefícios de se aplicar métodos científicos no clima, mas alertaria que precisamos ter cautela ao fazê-lo, porque muita mediação dos seres humanos inevitavelmente levaria a efeitos desastrosos

Brian Herbert, Escritor, roteirista e filho de Frank Herbert

A capacidade humana de mudar todo um ecossistema fascinou e perturbou Herbert, o que explica que, com o aumento do interesse pelas mudanças climáticas nas últimas décadas, o subtexto ecológico de Duna tenha alavancado ainda mais a relevância da obra. Não é por acaso que grandes cineastas tenham tentado recriar esse universo nas telas: além de Villeneuve, que está prestes a lançar sua adaptação, o chileno Alejandro Jodorowsky não conseguiu tirar seu projeto do papel nos anos 1970 e David Lynch lançou um filme em 1984.  Brian Herbert respondeu às seguintes perguntas do Estadão sobre a obra de seu pai:

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Ilustração do primeiro volume da graphic novel de 'Duna' Foto: Raúl Allén e Patricia Martín/Intrínseca

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Embora essa graphic novel seja mais fiel ao livro original do que as adaptações audiovisuais, você espera que ela adicione algo ao universo de Duna? Absolutamente. A nova graphic novel publicada em três volumes, apresenta a trama de Frank Herbert a novos leitores que podem preferir esse formato. Mesmo para quem já leu e assistiu aos filmes essa série ilustrada é uma variação, mostrando como roteiristas e artistas visualizam a história. E todos os envolvidos nessa empreitada são fãs de Duna! A prosa de Frank Herbert é bem expositiva e tem um narrador que reflete bastante sobre o que conta. Como vocês traduziram essa narrativa para a linguagem dos quadrinhos? Nós passamos pelo romance original cena a cena e dispusemos tudo como Frank Herbert escreveu. Kevin e eu então comprimimos as cenas em seus elementos primários, focando em cada uma como se as estivéssemos fotografando.Frank Herbert escreveu sobre modificar o clima de um planeta antes das mudanças climáticas serem amplamente discutidas. Como você acredita que ele veria essa discussão hoje?  Ele escreveu a respeito desses conceitos na série Duna e em outras obras, no contexto mais amplo de como a humanidade impacta os processos naturais e como isso nem sempre caminha de uma forma positiva. Se Frank Herbert estivesse vivo hoje, ele veria os benefícios de se aplicar métodos científicos no clima, mas alertaria que precisamos ter cautela ao fazê-lo, porque muita mediação dos seres humanos inevitavelmente levaria a efeitos desastrosos. Caminhos naturais são sempre os melhores. Ao crescer com um criador de mundos tão talentoso como seu pai, que lições você aprendeu para construir seus próprios mundos e criar seu estilo? Como eu escrevi na minha biografia de meu pai, Dreamer of Dune, ele era tão complexo que eu não pude me tornar próximo dele até que eu tivesse por volta de 20 anos. Depois disso, nós nos tornamos melhores amigos e ele me ensinou muitas coisas sobre a arte da escrita. Ele era um grande professor e quando eu escrevo hoje, como faço todos os dias, penso nas lições que ele me transmitiu. Aqui, apenas mencionando uma delas especificamente, como estamos falando sobre quadrinhos, eu direi que Frank Herbert gostava de pensar cada cena que ele escrevia como se estivesse a observando através das lentes de uma câmera. Entre outras coisas, ele trabalhou como fotógrafo e isso deu a ele uma maneira de trazer cada cena à tona visualmente para os seus leitores.

O trabalho cuidadoso que você desenvolve para expandir o universo ficcional de seu pai lembra a edição que Christopher Tolkien fez dos livros póstumos do pai dele, J.R.R. Tolkien. Você já temeu que essa decisão artística pudesse ofuscar a sua própria literatura? Como eu escrevi em Dreamer of Dune, eu nunca tive a intenção de ser um escritor. Mas eu cresci numa casa com dois autores – Frank Herbert e minha mãe, Beverly Herbert – e havia livros por todos os lados, além das conversas recorrentes de meus pais sobre histórias ficcionais. Eu acredito que era inevitável que eu começasse a escrever algum dia – e criasse minha própria voz. Comecei com humor, então sátiras como Sidney’s Comet, meu primeiro romance. Em todos os livros que eu fiz, nunca me preocupei por ser ofuscado por meu pai. Eu apenas me tornei um escritor no que eu acho que seja um processo natural, e escrever é algo que eu preciso fazer todos os dias. Quando eu comecei a escrever novos romances de Duna com Kevin J. Anderson, eu primeiro passei um ano inteiro criando o colossal e inédito Dune Concordance, de modo que nós dois tivéssemos uma referência enciclopédica a tudo que Frank Herbert escreveu ao longo da série. Ao criar essa enciclopédia e ao passar cinco anos escrevendo a biografia de meu ilustre pai, eu fiz o meu dever de casa – então quando comecei a escrever novos romances com Kevin, não me senti intimidado. Eu sabia que estava pronto para isso e foi um prazer ampliar o universo deDuna para novos leitores.De que forma seus livros, especialmente os que não são relacionados ao universo de ‘Duna’, como ‘The Race For God’ e ‘The Little Green Book of Chairman Rahma’, diferem da obra de seu pai? Você mencionou dois de meus romances baseados em “altos conceitos” – ideias muito grandes que eu iluminei nas páginas dos livros. De fato, se você olhar meus romances um por um, verá que eu fiz isso numerosas vezes. De várias formas diferentes. Eu gosto de ver tecidos sociais enormes que impactam bilhões de pessoas, e então escrevo sobre eles no âmbito da ficção científica e da fantasia. Em The Race for God, eu tratei do tema das religiões falhando em ver que têm mais em comum do que parece e que elas deveriam enfatizar pontos convergentes em vez das discordâncias. Essa é uma boa lição para a política atual, que é tão divisiva. Em The Little Green Book of Chairman Rahma, eu imagino uma política ambiental rígida que almeja preservar o ambiente tão ferrenhamente que os humanos são forçados a viver em “reservas para humanos” de modo a evitar que as pessoas prejudiquem o meio ambiente, como elas vêm fazendo. O romance investiga o que é melhor para a ecologia em comparação com os direitos humanos e como fazer ambos funcionarem. Em meu romance Ocean, baseado em um conceito de minha mulher, Jan, as criaturas marinhas da Terra não toleram mais a poluição dos humanos nos oceanos – e todas essas criaturas, incluindo monstros marinhos tidos como extintos, formam uma força militar que ataca as nações poluidoras, devolvem os plásticos para seu próprio solo e mantém as pessoas longe dos mares como punição. Em The Stolen Gospels, eu sugiro que as autoridades da Igreja na antiguidade, todos homens, deletaram muitas passagens da Bíblia escritas por mulheres. Nesse romance e em sua sequência, as escrituras femininas voltam à vida na forma de meninas que ressuscitam como apóstolas de Jesus e começam a recitar os textos ausentes em aramaico antigo para compor uma nova Bíblia. 

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