O que Susan Sontag pode nos ensinar na era da covid-19

Ensaio da crítica americana publicado nos anos 1970, após sua luta contra o câncer, refletiu sobre como a sociedade enquadra as doenças como metáforas e atribui uma dimensão moral a elas

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Por Philip Kennicott

Eu me mudei para a cidade de Nova York em 1988, quando a crise da Aids estava entrando em seu capítulo mais sombrio. No West Village, dava para vê-la nos rostos dos transeuntes, não apenas rostos magros e debilitados pela doença, mas também rostos cheios de preocupação, luto e desespero. Na hora do almoço, eu lia diligentemente as páginas dos obituários e notava a terrível juventude dos mortos, como se alguém pudesse juntar todo aquele tempo perdido, toda aquela vida não vivida e guardá-la para depois, agarrando-se a algo que um convidado distraído deixou para trás.

Escritora americana Susan Sontag antes de uma entrevista coletiva em Roma, em 9 de junho de 2003 Foto: REUTERS/Alessia Pierdomenico

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Quando meus próprios temores ficavam insuportáveis, eu caminhava pela cidade até as livrarias do East Village – a Strand ou a St. Mark’s – onde esperava encontrar alguma coisa que me oferecesse um pouco de equilíbrio mental. E um livro me mudou para sempre, um livro que parecia o equivalente intelectual de respirar fundo dez vezes durante um ataque de pânico. Era um volume fino, chamado A Doença como Metáfora, de Susan Sontag. Publicado pela primeira vez na New York Review of Books entre 1978 e 79, o extenso ensaio sobre como a sociedade enquadra as doenças foi escrito depois da luta de Sontag contra um câncer de mama de estágio 4 em 1975.

É uma discussão mais clara, apaixonada e convincente que qualquer coisa que qualquer crítico já tenha escrito e apresenta um argumento simples, com uma grande sutileza: devemos tratar a doença como doença, e não a sobrecarregar com imagens, metáforas e avaliações morais. Câncer é câncer, não importa o que a sociedade sussurre em seus ouvidos sobre a doença, sobre a maneira como você a contraiu e como ela afetará seu corpo.

“Não quero descrever como é emigrar para o reino dos enfermos e viver ali, mas, sim, as fantasias punitivas e sentimentais inventadas sobre essa situação”, escreveu Sontag. Como somos todos mortais, ela argumentou, todos sofreremos com alguma doença, mas não precisamos carregar tanta bagagem social nessa jornada. Compreendendo a maneira como as metáforas estruturam nossa experiência da doença, podemos diminuir seu poder sobre nós.

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Agora estamos doentes de novo, vastamente doentes, em todos os sete continentes, com milhões de mortos sob uma pandemia que se alastra há mais de um ano. O fim desta doença ainda é incerto e está a meses de distância, principalmente para quem vive nas regiões mais pobres do planeta. Neste ponto in media res, será possível discernir e, quem sabe, assumir algum controle sobre as metáforas e imagens que estruturam nossa percepção social da covid-19? Talvez não tenha se passado tempo suficiente, e o coronavírus se move rápido e agora está em mutação, então suas metáforas também podem mudar.

Mas existe uma ideia recorrente nas discussões sobre a doença, e é essencial entender como ela funciona e carrega algumas das fantasias e imagens sombrias contra as quais Sontag alertou: a covid-19 é uma doença inflamatória, termo médico cujas raízes latinas estão na ideia de acender ou atear fogo a algo. A palavra inflamação foi fundamental nos primeiros relatos sobre o surgimento do vírus na China, um ano atrás.

“Os resultados piores nas pessoas mais velhas talvez derivem, pelo menos em parte, do enfraquecimento do sistema imunológico relacionado à idade e do aumento da inflamação, que pode promover replicação viral e respostas mais prolongadas à inflamação, causando danos duradouros ao coração, ao cérebro e a outros órgãos”, explicou um médico do Hospital Jinyintan, em Wuhan, no mês de março. Entre os relatos perturbadores sobre uma doença que se parecia com a gripe, que atacava nossos pulmões e nos fazia tossir, havia estranhos registros de jovens – e até mesmo atletas – cujo tecido cardíaco estava inflamado e assim permaneceu por semanas ou meses.

Mas a inflamação não é apenas um sintoma da doença. Parece fazer parte de sua etiologia, de suas origens e efeitos morais e sociais. A covid piora coisas que já estão ruins, inflama as coisas. Um artigo do Asian Financial Review de março de 2020 a descreveu com uma imagem estranha: “É como ter um convidado perigoso e indesejado para o jantar”. E o que esse convidado fazia? Criava uma espécie de pânico no sistema imunológico, deixando-o exausto: “Em vez de ajudar os pulmões sob estresse, ele induz muita inflamação, piorando a situação”.

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Os cientistas começaram a empregar a palavra “comorbidades”, mas os leigos entendiam as coisas de um jeito mais simples: se você não estiver com a saúde boa, esse vírus vai piorar tudo. Os críticos e cientistas sociais também tomaram a imagem de empréstimo, observando como a covid inflamava tensões e desigualdades sociais pré-existentes. A doença atacava desproporcionalmente os pobres e as pessoas historicamente marginalizadas, sobretudo as pessoas não brancas.

Durante o verão, enquanto os americanos saíam às ruas para protestar contra o assassinato de George Floyd pela polícia em Minneapolis, a sensação de inflamação só aumentou. A covid foi diabolicamente trabalhada para afligir um mundo no qual já estávamos em carne viva, sofrendo e sempre nos debatendo, gerando atrito nas nossas circulações globais e locais. Era uma doença cosmopolita – um convidado indesejado para o jantar – mas uma doença cosmopolita que estava matando os trabalhadores da linha de frente que mantinham em marcha o incessante alvoroço da nossa economia.

Suas origens pareciam estar num salto do reino animal para o corpo humano, uma transmissão promovida por essa proximidade antinatural e até pelo aquecimento global, à medida que os humanos avançam sobre um território que antes era pouco ou quase nada habitado.

“O aquecimento global deixará as doenças mais prevalentes”, disse um especialista em pandemias e na indústria de viagens ao Boston Globe no início deste ano. “Os humanos estão invadindo habitats naturais, o que faz com que as doenças zoonóticas fiquem ainda mais prevalentes”. A poluição do ar, alertou um grupo de importantes organizações de saúde cardiológica, também estava exacerbando o risco de mortes por covid.

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Em A doença como metáfora, Sontag escreveu sobre doenças – câncer e tuberculose – que cobravam seu preço por períodos relativamente longos, de modo que a experiência de estar doente durava meses ou anos. A covid, porém, avançava com rapidez, queimando suas vítimas não com o fogo lento da tuberculose ou a dissolução interna do câncer, mas com uma chama intensa. A metáfora do “incêndio florestal” se tornou algo comum nas descrições da doença, especialmente a ideia dos “focos”, quando os países que de início haviam reduzido suas taxas de infecção voltavam a enfrentar surtos repentinos de infecção. Incêndio parecia uma descrição mais adequada do que o franco debate científico sobre um vírus e seus vetores, talvez porque “viral” já estivesse em uso para descrever a desinformação que permitira à covid arrasar a Terra.

O livro de Sontag – e um ensaio posterior que ela escreveu sobre a Aids e suas metáforas – fez com que eu me afastasse de meus próprios medos e visse as coisas com um pouco mais de serenidade. Ela vasculhara literatura, arte, filosofia e psicologia para descrever como a sociedade muitas vezes atribui uma dimensão moral à doença. O mundo antigo enxergava as doenças, especialmente as pragas, como evidências da ira divina. No século 19, a tuberculose inspirou um moralismo mais sutil: a doença revelava o caráter e parecia refinar e até enobrecer as almas.

Com o câncer e, mais tarde, a Aids, as fantasias punitivas voltaram. O câncer, escreveu Sontag, era “uma gravidez demoníaca”, uma doença de riqueza e abundância, talvez até mesmo uma doença do desejo frustrado e da libido impedida. “O tuberculoso moribundo é retratado como alguém feito mais belo e com mais alma”, escreveu ela, enquanto “a pessoa morrendo de câncer é retratada como alguém destituído de todas as capacidades de autotranscendência, humilhado pelo medo e pela agonia”.

Com a covid-19, não sabemos ainda o que fazer quando se trata de culpa. O presidente Donald Trump fez esforços repetidos para rotulá-la como “o vírus da China”, e não deixa de ser fascinante que esse rótulo cínico e xenofóbico nunca tenha ganhado força com a maioria dos americanos. As pessoas parecem entender intuitivamente que o vírus não respeita identidades nem nacionalidades, que é um sintoma de uma condição transnacional mais ampla. Mas, para além dessa intuição básica, há pouco consenso sobre as dimensões morais da doença. E essa falta de consenso só inflama ainda mais as coisas.

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No momento em que Trump caracterizou a covid como algo em que você acreditava ou não acreditava, caímos ainda mais nas chamas. A maneira como Trump lidou com a pandemia pode ter destruído sua credibilidade, mas o vírus inspirou a apoteose do trumpismo. Foi como combustível nas brasas do pensamento anti-iluminista, encorajando o ceticismo contra a ciência e até mesmo a desconfiança frente às estruturas elementares do pensamento, como causa e efeito. Aqueles que se recusavam a usar máscaras e tomar outras precauções básicas às vezes recorriam a alguma pseudociência, mas muitas vezes estavam sendo simplesmente fatalistas: talvez pegassem o vírus, talvez não pegassem, quem é que realmente sabe alguma coisa?

O resto do país ficou perplexo. Vínhamos assimilando em vários graus a lição fundamental do livro de Sontag – precisamos extirpar o moralismo das nossas ideias sobre a doença – então era difícil saber o que fazer quando a covid começou a testar nosso caráter moral nacional. O mundo está doente, cada vez mais doente, porque muitas pessoas parecem não se importar com o bem-estar dos outros. Depois de viver numa época em que canalhas e fanáticos diziam que a Aids era um castigo divino, não tenho estômago para atribuir sentimentos morais a essa doença. Posso ficar zangado com uma liderança política incompetente, mas, quando vejo pessoas reunidas sem máscaras nos bares e restaurantes, nas piscinas ou na praia, é mais fácil ser simplesmente fatalista. Não quero odiar essas pessoas, então é melhor direcionar a raiva para todos, coletivamente: “Estamos todos condenados”.

Anos depois de Sontag publicar A Doença como Metáfora, seu filho, David Rieff, escreveu que sua mãe jamais se reconciliou com a morte, que o medo da morte a perseguiu por toda a vida. De início, fiquei profundamente desapontado ao ler isso, porque sua sabedoria havia diminuído meu medo da morte num momento crítico. Mas não posso culpá-la. Ela raciocinou o mais longe que pôde e, para além desse ponto, a razão já não poderia levá-la. Sempre existe um buraco negro.

Que é onde estamos agora. Grande parte do país se sente impotente diante de forças que não compreende, o resto se sente impotente diante de pessoas que não compreende. Não conseguimos enxergar um jeito de sair desse impasse. Estamos na fornalha ardente da desintegração social e só queremos uma coisa: que uma vacina supergelada resfrie tudo antes que sejamos consumidos pelo incêndio. / Tradução de Renato Prelorentzou 

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