Obra de poeta russo que não deixou seus versos escritos é reeditada

Poemas de Ossip Mandelstam sobreviveram ao tempo graças à sua mulher, Nadejda, que os decorou

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Por Gilles Lapouge
Atualização:

É comum dizer que os primórdios da URSS foram um período próspero para a poesia soviética. Podia ser o odor de tragédia, que rondava então nos céus proletários, podia ser a exaltação de um país que sonhava em renovar a história e até mesmo a condição humana, o fato é que os poetas eram numerosos e muitas vezes excelentes. Podemos citar Vladimir Maiakovski, Boris Pasternak, Anna Akhmatova e Marina Tsvetaeva. Mas, no meio dessa lista, há uma página arrancada, ausente. Um vazio e um silêncio. Hoje sabemos que esse vácuo foi ocupado pelo maior poeta soviético, Ossip Mandelstam, que morreu perto de Vladivostok, na estrada do Gulag, em 1938, aos 47 anos.

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Ficha criminal do poeta russo Osip Mandelstam Foto: Wikimedia Commons

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Não foi preciso nem Gorbachev nem a Perestroika para que finalmente pudéssemos ver a silhueta devastada de Mandelstam. Um pouco mais tarde, o grande poeta romeno/alemão Paul Celan, que morreu em Paris em 1970, nos trouxe ao conhecimento alguns desses textos recuperados da morte.

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Hoje, as edições francesas Le Bruit du Temps (O Ruído do Tempo, título tomado emprestado de um poema de Mandelstam) nos permite finalmente ler Mandelstam em dois volumes elegantes num estojo, um de prosa, outro de poesia, traduzido pelos melhores poetas franceses, tais como Philippe Jacottet.

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Dizer que esses textos foram salvos do silêncio não é uma imagem. Deve ser entendida em seu sentido literal. A palavra de Mandelstam nasceu no silêncio, após o que foi exilada e salva ao mesmo tempo pelo silêncio. Por causa da ferocidade dos soviéticos? Não só. Muito antes da Revolução Bolchevique de 1917, Ossip Mandelstam tinha um hábito russo muito comum: lia seus poemas em público. E ele, Ossip, não só deixou de publicar seus poemas, como também não os escreveu. Ele os colocou na cabeça, não no papel. E então? Por quais desvios essas palavras perdidas regressaram para nós hoje, nos perturbando com sua violenta beleza? Resposta: pelo amor e coragem de uma mulher, Nadejda, a esposa de Mandelstam.

Nadajda Mandelstam, a mulher do poeta Osip Mandelstam, que decorou sua obra 

Foi como se a poesia de Mandelstam tivesse sido duas vezes condenada à extinção, primeiro por causa da escolha de Mandelstam (a palavra antes da escrita), e então, após a revolução, por causa da polícia bolchevique. Felizmente, sua esposa, Nadejda, dedicou-se a memorizar seus poemas para salvá-los. Mais tarde, ela contará sua história em um livro magnífico, Contra Toda a Esperança.

Mandelstam explicou por que ele confiou sua poesia à voz, mais que ao papel. “Preste atenção para ouvir a germinação e o som do tempo”. E novamente: “Eu não tenho nem manuscritos nem cadernos. Os vestígios de minha mão não são identificáveis porque eu nunca escrevo. Eu sou o único na Rússia a trabalhar com a voz enquanto todos à minha volta, o bando de galgos com pelo grosso, esse populacho, escreve. Que diabo de escritor sou eu!” A “turba” são as pessoas do sistema literário, em “ismos” (futurismo, etc.), funcionários cúmplices, “as damas de mãos gordas”. Ele, Ossip está à procura de algo mais, “procura o silêncio e a suspensão do tempo”. Buscando um leitor? “Um poema”, diz Ossip Mandelstam, “sempre se dirigindo a alguém, um destinatário desconhecido”.  Ossip, no entanto, não é um solitário. Ele é um homem risonho, que ama o amor, e a amizade. Este judeu agnóstico é “alucinadamente vivo” incrivelmente brilhante. Atento a todos, submerso na música, aprendendo idiomas. Mandelstam era um “fogo flamejante de palavras”.

Estátua do poeta russo Osip Mandelstam 

Em 1919, ele tem 29 anos e encontra Nadejda em um cabaré. Ela tem 19 anos de idade. Eles dormem juntos desde a primeira noite. Nadejda explica orgulhosamente: “Estávamos no início da revolução sexual.” Nos anos seguintes, Ossip permanece fiel a essa revolução sexual. Zeloso revolucionário, ele explora todos os recantos. Ele dorme com a atriz Olga Arbanian e mais outra atriz, Olga Veksel, mais a poeta Maria Petrovykh e outras... Sua jovem Nadejda às vezes acha que esta revolução sexual é um tanto quanto bem-sucedida demais, mas perdoa. Ela ama Ossip e Ossip a ama.

Por muito tempo, a vida de Ossip é simples, apesar do regime soviético. Então, ao invés de seguir os meandros, é melhor mostrar alguns de seus poemas, salvos duas vezes da ausência, graças a Nadejda. Este poema de 1933, foi traduzido por Henri Abril: “Neste janeiro, o que fazer de mim mesmo? / A cidade louca e aberta se agarra a nós. / Estaria eu embriagado com tantas portas se fechando? / Eu tenho vontade de gritar frente a todos os ferrolhos! / E as queixas dessas ruelas barulhentas, / E os sótãos de ruas tortuosas sem fim, / E os moleques, movendo as asas, / Escondendo-se e reaparecendo em cantos e recantos. / Eu escorrego no buraco, na sombra de cem verrugas, / Para ir até a bomba congelada, / Eu tropeço enquanto mastigo o ar morto, repleto de vermes infectos / Enquanto se espalham as gralhas febris. / E depois deles eu exclamei e gritei de repente, / Nesta glacial caixa de madeira: / “Um leitor! Conselhos! Um médico! / Nas escadas encaracoladas, fale, fale comigo”. 

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Tradução de Lauro Machado Coelho: “Os dedos desse assassino de camponeses / são grossos como salsichões, / e as palavras caem de seus lábios pesadas como chumbo. / Seus bigodes de barata vibram / e o cano de suas botas é reluzente. / À sua volta, há um rebanho de líderes / de pescoço fino, homens pela metade, que o bajulam / e com quem ele brinca como se fossem animais de estimação. / Rosnam, ronronam, uivam cada vez / que ele fala com eles ou lhes aponta o dedo. / Um a um, forjam leis para que, depois, / ele os acerte com a ferradura na cabeça, / no olho, no baixo-ventre. / E cada vez que eles matam, isso é um pitéu / para aquele ossétio de pescoço grosso.” 

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Tradução de Augusto de Campos: “Seus dedos grossos são vermes obesos. / Suas palavras caem como pesos. / Baratas, seus bigodes dão risotas; / Brilham como um espelho as suas botas. / Cercado de um magote subserviente, / Brinca de gato com essa subgente. / Um mia, outro assobia, um outro geme. / Somente ele troveja e tudo treme. / Forja decretos como ferraduras: / Nos olhos! Nos quadris! Nas dentaduras! / Frui as sentenças como framboesas. / O amigo Urso abraça suas presas.”

Ossip foi preso na noite de 16 de maio de 1934, condenado a cinco anos de trabalho forçado. Seu amigo Boris Pasternak (Prêmio Nobel mais tarde por Doutor Jivago), que nunca foi um especialista em coragem (ele escreveu poemas em louvor a Stalin) ficou sabendo que Ossip está sob prisão domiciliar na cidade de Voronezh. Em 1937, Ossip retornou a Moscou, mas foi preso novamente em 1938 e condenado a cinco anos num Gulag. Ele não se dobrou.

“Ao privar-me dos mares, do entusiasmo e das asas, dando aos meus pés o assento de um terreno violento, o que você conseguiu? Calculou mal. Você não dominou aqueles lábios que se movem.”

Ou ainda: “No meio da estrada da minha vida, fui detido na floresta profunda dos sovietes por bandidos que se intitulavam meus juízes. Eles eram homens velhos com pescoços retorcidos e pequenas cabeças de ganso.”

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O jovem homem, admirável pelos seus risos, palavras de amor à vida, tornou-se aos 47 anos de idade algo já póstumo, pisando nas neves da Sibéria, jogado nu nas paisagens de gelo para as sessões de desinfecção. Ele não aguenta mais. Ele está em Vladivostok para ser conduzido a um novo círculo do inferno, o Gulag. Ele jamais chegará ao Gulag. Morreu em algum lugar em 27 de dezembro de 1937, ou segundo outros, no início de 1938, em um campo de transferência perto de Vladivostok.

“Quando eu vou morrer tendo cumprido o meu tempo / Eu, sempre amigo de todos que vivem na terra / Vai soar mais alto e mais imensamente / O eco do céu no meu peito inteiro.”

Alguns meses antes, quando ainda estava em Voronezh, sua esposa Nadejda conseguiu o direito de visitá-lo. Ele não podia mais. Disse a Nadejda mais ou menos isso: “Veja, nós imaginamos que as pessoas não estão mais interessadas em poesia neste país. Em todo caso, há pelo menos um que leva a poesia a sério, é Stalin.” E, em breve, a vida de Mandelstam acaba e em seguida tudo começa. / Tradução de Claudia Bozzo 

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