Um dos clichês mais absurdos ditos sobre José Guilherme Merquior é que ele foi apenas um “talentoso polemista liberal”. Por ser quase onipresente em todos os cadernos culturais importantes do Brasil entre 1980 e 1990, divulgando ideias e autores mal conhecidos por aqui, além de ter uma produção vertiginosa de livros, era evidente que essa categoria se encaixava como uma luva no jovem diplomata que, desde a década de 1960, encantou a intelectualidade tupiniquim pelo seu modo combativo de defender acima de tudo o debate racional. Contudo, com seu precoce falecimento em 1991, aos 49 anos, sua ausência nunca foi devidamente preenchida por algum sucessor – e o epíteto escrito acima se tornou cada vez mais permanente na nossa memória.
A monografia inédita O Estruturalismo como Pensamento Radical, redigida em 1968 na França, às vésperas das revoltas estudantis de Maio, e publicada agora pela É Realizações na coleção das obras completas de Merquior, vem para eliminar essa classificação bizarra. Trata-se de um evento e tanto, por dois motivos. O primeiro é, claro, porque mostra que o autor de O Elixir do Apocalipse (1983) era sobretudo um scholar com um pensamento filosófico próprio que seria a base posterior de todas as suas intervenções públicas na imprensa, em especial naquele momento histórico conturbado no qual o Brasil vivia, repleto de autoritarismo e de questionamentos sobre a natureza da democracia (aliás, muito semelhante ao que vivemos hoje). E o segundo é que ele reintroduz, com vivacidade, a importância da obra de Claude Lévi-Strauss, o antropólogo que, com suas pesquisas etnográficas, foi o responsável por popularizar um molde de perspectiva científica intitulado justamente de “estruturalismo”.
A admiração de Merquior por Lévi-Strauss já existia desde que o jovem prodígio estreou nas letras com suas coletâneas de crítica literária, Razão do Poema e A Astúcia da Mímese. Para ele, um poema ou uma obra de arte deveriam ser analisados sobretudo pela sua estrutura intrínseca, e não necessariamente pelo conteúdo discorrido em seus temas. Isto o impedia de cair no marxismo juvenil que já atacava alguns colegas seus de profissão ou no tradicionalismo católico da elite literária que já cheirava à naftalina. Com o passar do tempo, a preocupação de Merquior sobre um método de observação que se estendesse da literatura para as ciências humanas, até chegar na filosofia política, cresceu para que ele encontrasse, no estruturalismo de Lévi-Strauss, uma maneira de compreender o tema oculto que orientou todos os seus escritos: como lidar com o fato de que este mundo é consumido pela permanência da perda?
Na monografia que temos em mãos, Merquior conseguiu uma solução a partir de uma tese insólita: o estruturalismo não seria somente um método de pesquisa etnográfica, mas sim um pensamento radical, cuja raiz filosófica poderia ser localizada no Iluminismo peculiar de Jean-Jacques Rousseau e no idealismo alemão de Immanuel Kant, para depois ter suas ramificações na sociologia de Max Weber, na análise fenomenológica de Martin Heidegger e até mesmo na polêmica “arqueologia do conhecimento” que fez muito sucesso com Michel Foucault. O escopo é enorme, sem dúvida, e o ensaísta brasileiro usa e abusa das suas habilidades estilísticas para comprovar o seu argumento – e o resultado final é simplesmente brilhante.
A partir de Rousseau, Merquior explica que a pesquisa sedimentada por Lévi-Strauss procura superar o solipsismo do cogito cartesiano por meio da “piedade”, que unificaria a razão e a sensibilidade, entendendo que, com Kant, o conhecimento precisa de categorias do tempo e do espaço para organizar melhor a confusão do real. Este procedimento criaria assim uma “grade” a equilibrar a diferença e a unidade – justamente a “estrutura” sistemática a dar corpo para quem deseja buscar algo constante em um mundo onde, por causa dos cataclismas que atingiram a modernidade, “o fim do homem (e da sua cultura)” se encontra muito próximo.
O estruturalismo seria o registro desse crepúsculo, feito com rigor e objetividade, mas sem deixar de lado uma certa melancolia pelas coisas que passam. Talvez tenha sido por isso que Lévi-Strauss, após receber o texto da monografia enquanto o brasileiro era seu aluno nos famosos seminários da Sorbonne naqueles loucos anos 1960, escreveu a Merquior de maneira tão sincera que ambos passaram a se corresponder não como mestre e discípulo, e sim como dois obcecados por uma virtude do conhecimento que não existia mais. Em todo caso, conforme nos informa o posfácio esclarecedor de João César de Castro Rocha (organizador da coleção Merquior), tal simpatia não impediu do famoso antropólogo de fazer a seguinte observação ao garoto prodígio a respeito da monografia inédita: “Lévi-Strauss confessou nunca ter lido uma única página de Max Weber e de Martin Heidegger; na verdade, nem sequer abriu um livro dos dois autores. Um reparo que talvez ajude a compreender a razão pela qual o livro, na década de 1960, não foi publicado na França”. O francês também “considerou que a dimensão das seções consagradas a Rousseau e a Kant tornaram o volume desproporcional: é como se Merquior tratasse mais das premissas prévias ao estruturalismo, a fim de mapear o seu lugar na tradição filosófica, do que de seu aspecto propriamente antropológico”.
Como alguém dotado de uma inteligência aguçada, o diplomata enfim revela a sua verdadeira intenção ao escrever a monografia sobre o estruturalismo: nada mais, nada menos que a recuperação integral da obra de Rousseau para a discussão do que significa “o espírito da democracia”. Ele confessa que “a coisa mais difícil é assumir a finitude, é chegar a compreender que todas as nossas obras são perecíveis, sem por isso serem totalmente inúteis”. É esta noção aguda de uma permanência da perda na estrutura do real, especialmente na ação política, que o faz encontrar no estruturalismo de Lévi-Strauss uma brecha para que a “piedade” rousseauniana seja a ponte rumo a um ambiente mais sadio – e, sobretudo, mais ordenado, especialmente num mundo que foi possuído pelo “elixir do apocalipse”, pleno de irracionalismo e de revoluções infinitas.
A restauração do que significa de fato o pensamento de Rousseau elaborada por Merquior antecipa de maneira pioneira o que seria feito no Brasil por Bento Prado, Jr., em seu A Retórica de Rousseau (1975), e dialoga com o que já era discutido na França por meio do clássico A Transparência e o Obstáculo (1957), de Jean Starobinski. Trata-se de uma evocação que reconhece um humanismo crítico a surgir da “fidelidade essencial da visão estruturalista” às obras do criador de Emílio. Assim, ao se voltar para Rousseau como precursor de Lévi-Strauss, Merquior ataca tanto as objeções de um conservador como Irving Babbitt (“autor do retrato mais néscio de todos os maus retratos de Rousseau”) como reforça a sua própria perspectiva filosófica racionalista de que ele é também o arauto de uma abertura a uma “nova era da história da humanidade”.
Em suma: como sempre ocorre com os que evitam beber do “elixir do apocalipse”, eles também passam a se recusar sorver o “elixir da impermanência”. O mundo (e, por consequência, o Brasil) sem dúvida seria um lugar melhor se José Guilherme Merquior tivesse decidido beber ambos os cálices. Na sua tentativa comovente de elaborar um pensamento radical próprio, muito além de qualquer polêmica liberal (como pensaram seus contemporâneos), abriu caminhos para que o seu próprio país preservasse um pouco o “espírito da democracia”. E é uma pena que, no exato momento do lançamento dessa impecável monografia inédita, os seus futuros leitores serão testemunhas não só do fim de uma era, mas sobretudo do fim de tudo aquilo que importa para as nossas virtudes.
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