Na ponta da língua (ou dos dedos, em se tratando de escrita), não raro a pulsão de morte é evocada mediante assombros com a capacidade humana de destruição e sofrimento. Crime, tortura e barbárie são expressões da violência que carregam a inconfundível assinatura dos seres humanos. Não surpreende que parte do imaginário popular tenha capturado um conceito elaborado por Freud em 1920 e dele digerido uma possibilidade de entendimento de manifestações agressivas e aniquiladoras cujos remetentes por vezes coincidem com os destinatários. Salta aos olhos, porém, que esta noção tão cara ao fundador da Psicanálise continue encontrando resistência dentro da própria – e logicamente heterogênea – comunidade psicanalítica.
A controvérsia tem origem na construção e apresentação do conceito, assumidamente especulativas, ousadas e inconclusas, conforme exposição de Freud no texto Além do Princípio do Prazer, que completa 100 anos de publicação. Entende-se por pulsão de morte uma tendência, presente em todos os seres vivos, de retorno a um estado inanimado, ou seja, anterior à vida, com a completa eliminação das tensões. O termo tendência é aqui usado no sentido de uma orientação para algo e também pela característica das pulsões de sempre buscarem a satisfação. O conceito foi elaborado quando Freud observou situações cotidianas – como uma brincadeira infantil com um carretel – e clínicas – como a transferência entre analista e paciente – em que a repetição conduzia a experiências que não buscavam o prazer e, portanto, indicavam que a teoria disponível à época apresentava limitações. Uma destas situações tinha laços diretos com o pós-1ª. Guerra Mundial: soldados que retornavam do conflito reviviam acontecimentos traumáticos por meio de sonhos e lembranças. Este impulso inconsciente rumo ao desprazer do padecimento trazia novas questões para a psicanálise. Entre o patológico e o cotidiano emergia uma concepção de funcionamento psíquico que alteraria profundamente a teoria que sacudira o século 20 ao destituir o humano do controle sobre si e estabelecer a primazia do inconsciente frente à razão. Dentre as redefinições suscitadas, uma reescrita da doutrina das pulsões foi feita e um novo dualismo pulsional foi criado, antes representado pelas pulsões sexuais e as de autoconservação e então reconfigurado como pulsões de vida e pulsões de morte. Esses desdobramentos não foram menos significativos que a instituição de um outro modelo psíquico para os seres humanos, até então simbolizado pela divisão em Inconsciente, Pré-consciente e Consciência. Se hoje discutimos Eu, Isso e Supereu inclusive fora da clínica, a gênese desses termos necessariamente passa pela publicação de Além do Princípio do Prazer. A rejeição de uma formulação que modificou tanto o curso da investigação clínica quanto os fundamentos da metapsicologia não é sem justificativa. Além das conjecturas e hesitações mantidas no texto por Freud, pesava uma desconfiança acerca da validade do conceito, para alguns ameaçada pelas experiências pessoais que o autor estava tendo com a perda de pessoas queridas, e pelo fato de ele ter recorrido à biologia para subsidiar cientificamente a existência da pulsão de morte. Ainda que seus textos anteriores tivessem passado longe da unanimidade, este era de controvérsia ainda mais ruidosa. O resultado era um conceito fragilizado, até mesmo marginalizado entre os próprios praticantes da clínica. Autores como Jean Laplanche e Jacques Lacan, apenas para citar alguns, acolheram a novidade mas não o embasamento biológico oferecido; leram, na estratégia freudiana, um uso da biologia para fins de fantasia ou metáfora. No entanto, não é esta a tese defendida pelos autores do criterioso dossiê que acompanha a nova tradução de Além do Princípio do Prazer, lançada pela editora Autêntica. A edição, que é bilíngue, foi vertida do alemão para o português por Maria Rita Salzano Moraes e se propõe a reavivar o debate acerca da relevância da pulsão de morte. Para tanto, traz uma cuidadosa arqueologia da obra freudiana ao justapor, utilizando recursos gráficos, o texto conhecido a um manuscrito de 1919 inédito em português, e a acréscimos feitos nos anos seguintes. Conteúdos excluídos e adicionados compartilham de igual destaque na edição e se prestam a assinalar o modo como Freud foi elaborando – e descartando – suas hipóteses. O movimento de retirada e inclusão presente nas páginas não deve causar estranhamento aos leitores habituais dos assuntos do inconsciente, considerando que este é um sistema que opera com deformações, entrelinhas e ausências de cena. O dossiê não só avaliza o célebre original de 1920 como salienta sua pertinência 100 anos depois a partir dos mesmos elementos que fomentavam sua descrença. Em ensaios sobre as repercussões clínicas e verbetes psicanalíticos, literários, filosóficos e biológicos, autores diversos se dedicam a oferecer chaves acessíveis de leitura que trazem as múltiplas referências freudianas para o centro da argumentação. E é neste lugar de realce que o cuidadoso texto de Richard Theisen Simanke situa a biologia; não como metáfora ou acessório, mas sim, como um intencional empréstimo das mais recentes descobertas científicas da época, oportunizado pelo acompanhamento minucioso das produções de pesquisadores renomados naqueles campos. Importações não-psicanalíticas não chegam a ser uma novidade na rede de conceitos tecida por seu fundador. Convém lembrar que o braço de Freud já tinha se esticado também para outras direções, como seu entusiasmo ao encontrar no sentido antitético das palavras primitivas, descoberto pelo filólogo Karl Abel, um funcionamento análogo aos sonhos.
Agressividade nas relações
Dez anos depois de elaborar o conceito da pulsão de morte, Freud comentou, no texto
O Mal-Estar na Cultura
, que em 1920 era difícil demonstrar como sua recém-criada noção operava. “(...) Podíamos supor que a pulsão de morte trabalhava em silêncio, no interior do ser vivente, pela sua dissolução, mas evidentemente isso não constituía nenhuma prova. O que nos levou mais longe foi a ideia de que uma parte da pulsão se voltaria contra o mundo exterior e daí viria à luz como pulsão para a agressão e para a destruição.” Sua análise sobre a vida em sociedade e as renúncias impostas pela cultura foi responsável por um novo estatuto dado à pulsão de morte, com consistência mais tangível e efeitos visíveis, já que a agressividade ou era projetada sobre outras pessoas, ou era direcionada para si.
A disposição psíquica à agressão, segundo a teoria freudiana, seria uma predisposição originária e incontornável em cada um de nós, na medida em que remonta à pulsão de morte. Apesar de o nome trazer uma clara distinção da vitalidade, a pulsão de morte não é isolada e seu funcionamento se dá em associação com a pulsão de vida. As combinações e proporções dessas pulsões respondem pela pluralidade das formas de viver – e também pelos modos e intensidades de sofrimento.
Em que pese o aspecto inacabado da pulsão de morte, sua insuficiência foi motor de arranque. Freud não viu problemas em expor as arestas que o levariam a novos desenvolvimentos fundamentais e complementares, como a noção de Supereu e outras incidências da sublimação. A desaprovação felizmente não imobilizou o conceito, que experimentou consistência adicional no já citado
O Mal-Estar na Cultura
(1930) e em textos como
Novas Conferências Introdutórias à Psicanálise
(1933),
Por Que a Guerra?
(1933),
A Análise Finita e a Infinita
(1937) e
Compêndio de Psicanálise
(1940).
Ao fim de
Além do princípio do prazer,
Freud, em propósito notadamente científico, documenta seus titubeios e eterniza suas dúvidas, a despeito da marca de incompletude que persistiu impregnada para muitos. “A isso se juntam inúmeras outras questões, às quais agora não é possível responder. (...) Só aqueles crédulos que exigem da ciência um substituto para o catecismo abandonado levarão a mal o pesquisador por desenvolver ou por até mesmo reformular seus pontos de vista.” Avanços, portanto, pressupõem a capacidade de se revisar uma teoria. O movimento é de abertura, e não de fechamento, assim como pretende ser o trabalho clínico da Psicanálise.
É curioso que o escrito mais contestado de Freud chegue ao seu centenário suscitando perguntas e novos desenvolvimentos em um ano em que a ciência habita dois posicionamentos perigosamente discrepantes, seja o de uma verdade resoluta e intocável – portanto, imune a questionamentos –, ou o de desqualificação e total esvaziamento, especialmente de investimentos. Neste contexto retroagem com ainda mais potência os efeitos de seus escritos pregressos e posteriores acerca de uma doutrina das pulsões em flagrante construção, facultando o acompanhamento de um fazer científico e encorajando tentativas de preenchimento de lacunas.
É PSICANALISTA, JORNALISTA E MESTRE EM LINGUÍSTICA APLICADA PELA PUC-SP
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