Octavia Estelle Butler era filha de um engraxate, que morreu quando ela era bebê, e de uma empregada doméstica. Solitária declarada, Butler sempre se manteve distante: longe do barulhento emaranhado das crianças no recreio; de pé à sombra dos generosos carvalhos de Pasadena, Califórnia; escondida dentro de seu quarto nas horas depois da escola, perdida em algum lugar exótico dos livros.
Alguns dos livros eram dela, comprados com muito esforço. Outros eram rejeitos resgatados por sua mãe, que esfregava, tirava o pó e passava ferro nas casas dos bairros de maioria branca e rica de Pasadena – mundos adjacentes, mas apartados. A mãe de Butler a acompanhou até a biblioteca, onde elas fizeram uma carteirinha. Aquele pequeno pedaço de papel se tornou seu passaporte para viajar muito.
Infinitamente curiosa e observadora perspicaz, Butler vivia vividamente em sua imaginação. As histórias entre as capas eram um bálsamo, proporcionavam lugares onde ela podia desaparecer, ocupar novos cenários, explorar novas possibilidades e experimentar novas características. Ela começou a inventar histórias aos 5 ou 6 anos – e presentear sua mãe com elas.
Ela lia com sede e propósito. Tornou-se presença constante na Sala Peter Pan, a seção infantil da elegante Biblioteca Central de Pasadena. Quando esgotou suas prateleiras, ficou consternada ao saber que as pilhas para adultos estavam fora de alcance até seu aniversário de 14 anos.
Ela bolou soluções alternativas. Economizava os trocos, que tilintavam no seu bolso quando ela caminhava até a loja para comprar seus primeiros livros – sobre cavalos, dinossauros e estrelas que ela mal conseguia ver por causa da névoa do sul da Califórnia.
“Eu estava tentando escrever sobre Marte”, ela lembrou quando adulta, “mas não sabia nada a respeito”. Na escola, Butler sofreu para encontrar seu equilíbrio, mas as ciências a cativaram: apontavam para algo maior – uma série de questões em aberto. Sua imaginação, ela sabia, era um meio de escapar do beco sem saída do desespero. Mas ela precisava de um plano.
O ônibus era uma ligação necessária daqui para lá. Sentada bem acima dos carros, ela podia observar as paisagens inconstantes. O ônibus era uma janela para mundos diferentes
Para Butler, quando jovem em Pasadena, o ônibus era uma ligação necessária daqui para lá. Sentada bem acima dos carros, ela podia observar as paisagens inconstantes. O ônibus era uma janela para mundos diferentes. No ônibus, ela se deixava atrair para um papo ou escutar uma conversa que podia desencadear novas ideias.
Ela abria o caderno para agarrar uma ideia perdida, mesmo que apenas a semente de uma semente – com medo de que pudesse escapar.
“Los Angeles é tão espalhada que quase qualquer viagem de ônibus é imensa”, observou Butler certa vez. “O momento se provou perfeito para escrever”. Suas viagens de ônibus também permitiam que ela fizesse esboços de potenciais personagens. “Coleciono especialmente pessoas – aquelas que se destacam de alguma forma”, disse ela.
Em Pasadena, Butler era cercada por colinas e montanhas – e as observava mudando de verde para marrom. As magnólias e romãzeiras cresciam cheias de flores e frutas, e ela carregava blocos de notas para registrar seu crescimento, ano após ano – avaliando quão bem ou mal as árvores estavam indo. Ela viu como era importante nutrir o mundo natural. Isso também fazia parte de uma história maior que ela estava investigando, sobre a mudança da terra.
Por insistência da mãe, ela botou suas histórias no papel: em folhas soltas de rascunho, em papel timbrado encontrado no lixo, em seus cadernos comprados por dez centavos.
Num ato que foi considerado extremamente indulgente pela família, Octavia Margaret, mãe de Butler, presenteou a filha, Estelle (como sua família a chamava), com uma máquina de escrever no aniversário de 11 anos: um gigante pesado e manual que ela não tinha ideia de como operar. Mas era um poderoso talismã – símbolo de seriedade.
Na escrivaninha, focada no futuro, a Butler adulta muitas vezes se perguntava: será que conseguimos nos libertar do nosso passado?
Tarde da noite, Butler acabou caindo num filme B de ficção científica chamado A Marciana Diabólica. Aos 12 anos, sentada sob o brilho azul da nova televisão da família, ela achou o filme uma revelação: era espetacularmente ruim. Alguém foi pago para escrever isso, ela pensou. Imagine uma coisa dessas.
Na escrivaninha, focada no futuro, a Butler adulta muitas vezes se perguntava: será que conseguimos nos libertar do nosso passado? Não apenas das nossas escolhas pessoais – acertos e erros – mas das histórias desconfortáveis que herdamos e das maneiras pelas quais estamos inexoravelmente ligados a elas?
Desde muito ela tinha deixado para trás as histórias de fantasia e os romances sobre cavalos que escrevia quando menina para voltar sua atenção à ficção científica – às formas e contornos das histórias que lia em revistas como Amazing Stories, Fantastic e Galaxy Science Fiction. Ali ela encontraria sua voz, seu jeito, seu propósito.
A página em branco agora tinha profundidade. Escrever era como mergulhar em águas vastas e profundas. Sem limites, para onde ela poderia viajar?
Depois de publicar vários romances e conquistar um pequeno número de seguidores, Butler usou os escassos fundos que ganhara com a venda de seu livro mais recente, Survivor, de 1978, para embarcar na sua primeira viagem de pesquisa: viajou de ônibus até Maryland para pesquisar em bibliotecas e conhecer o mundo físico de uma fazenda.
Durante a viagem, ela ficou impressionada com o apagamento que testemunhou numa visita à casa de George e Martha Washington em Mount Vernon, onde os guias turísticos nunca se referiam a “escravos”, chamando-os de “criados”.
Butler via a própria história, em ‘Kindred’, como uma paisagem sobrenatural a ser explorada
Butler mais tarde escreveu que sua pesquisa fez com que o livro que saiu dessa viagem fosse um dos mais difíceis para ela, por causa das perdas, da dor e das vozes narrativas dos escravizados mortos. O romance, publicado em 1979, tornou-se um de seus livros mais conhecidos: Kindred: Laços de Sangue.
Em Kindred, a personagem principal, Edana “Dana” Franklin, é uma escritora negra em dificuldades que está montando sua casa nova com o marido branco, Kevin, quando inesperadamente viaja por uma misteriosa fenda no tempo desde sua vida na Califórnia contemporânea até uma fazenda no sul escravocrata. Ao longo do romance, ela fica se deslocando entre as duas eras, caindo repetidas vezes numa paisagem violenta que ela entende que não é simplesmente ocupada por seus antepassados, mas é, de fato, sua herança.
Butler sempre descreveu Kindred não como ficção científica, mas como uma “fantasia sombria”. Ele não tem as armadilhas ou dispositivos típicos do gênero: nada de máquina do tempo, nem de ciência exata. Com um sentido claro e criativo, Butler via a própria história como uma paisagem sobrenatural a ser explorada – estranha, mas familiar.
“Kindred era uma história de pessoas comuns presas a circunstâncias fantásticas”, escreveu Butler em um caderno de 1988. O sul antes da guerra era “outro planeta para Dana e Kevin – pessoas do ‘agora’”.
“Esse livro é único”, disse o dramaturgo Branden Jacobs-Jenkins, que está adaptando Kindred para o canal FX.
Ela deu às personagens de suas histórias – muitas vezes mulheres astutas e arrojadas – o poder e a capacidade de lutar usando quaisquer meios, artifícios modestos ou superpoderes ocultos que tivessem. Ela também lançou muitos problemas diante delas, para ver como poderiam sobreviver.
O que os heróis de Butler têm em comum é a desenvoltura e a coragem de resolver problemas várias vezes seguidas
Esse exercício de criatividade reflete de perto a própria experiência de vida de Butler. O que os heróis de Butler têm em comum é a desenvoltura e a coragem de fazer algo do nada – a capacidade de resolver problemas várias vezes seguidas.
Esse mesmo espírito anima a maneira como muitos leem Butler nos dias de hoje: não apenas como uma contadora de histórias talentosa, mas como alguém que testemunhou as crises que agora lutamos para superar.
A ficção era mais do que “histórias”, ela sentiu. Era uma maneira de adquirir um novo par de olhos – para trazer a mudança. Ela tinha visto tudo isso na sua própria vida.
“Octavia destruiu as fontes de seu próprio conforto sem hesitação”, escreveu Nisi Shawl, autora e aluna de Butler, na introdução da edição de 2021 da Library of America das obras completas de Butler. O que Butler passou para as gerações seguintes, disse Shawl, é a permissão para fazer o mesmo. “Emoções fortes, ela me aconselhou, são a melhor base para histórias”, escreveu Shawl. “O que você teme? O que você detesta? O que você gostaria de resgatar, proteger e preservar por toda a eternidade? Escreva sobre isso”.
O impacto de Butler foi indelével: apenas por estar na sala, em cima do palco, atrás do púlpito, ela gerou uma conversa mais inclusiva. Seu ponto de vista não era encontrado na ficção científica tradicional. Simplesmente por escrever ela exigia um mundo maior.
Como as romãzeiras cujos ciclos de vida ela estudara em sua terra natal, sua visão provou ser duradoura e frutífera. Ela é lembrada como séria e engraçada, implacável e disciplinada. Para alguém que viveu apenas 58 anos, ela deu muito, em seu trabalho e em sua vida – semeando sementes.
Quando lhe perguntaram qual era seu lugar no mundo, Butler respondeu: “Acho que meu lugar é onde quer que eu esteja”. Ela não estava interessada em escrever “heróis”. Estava interessada em descobrir maneiras pelas quais humanos imperfeitos conseguiriam garantir um futuro além do que viam.
“Não escrevo sobre heróis”, disse Butler certa vez. “Escrevo sobre pessoas que sobrevivem e, às vezes, prevalecem”.
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.