Os desafios da tradução de William Shakespeare no Brasil

Tradutor Lawrence Flores Pereira, que verteu a nova edição de 'Rei Lear', comenta as dificuldades

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O professor Lawrence Flores Pereira, da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-RS), é um dos expoentes da nova geração de tradutores brasileiros que trabalham arduamente na empreitada de verter para o português a obra de William Shakespeare. Nem bem acabou de desbravar Rei Lear, recentemente publicado pela Penguin, ele atualmente se dedica a outra peça do Bardo, a sombria Macbeth.

O ator Jamie Horton como Rei Lear na montagem da peça de Shakespeare dirigida por Stephen Brown-Fried para a Northern Stage Company em janeiro deste ano Foto: Kata Ssavari/Northern Stage

Os desafios dessas traduções são muitos e o ofício exige grande dose de uma solidão abnegada. Não bastasse o fato de as peças terem sido escritas no inglês praticado na virada dos séculos 16 e 17, Shakespeare muda constantemente os registros linguísticos de seus textos, usa e abusa dos trocadilhos e mistura prosa com poesia, sem contar que tudo foi escrito para ser encenado, ou seja, as falas possuem ritmo, pausas, entonações, respiração.  Ao longo dos últimos dez anos (ou mais) mergulhado nesse desafio shakespeariano, Flores Pereira também traduziu para a Penguin Otelo e Hamlet. Para ele, “decifrar” o Bardo está se transformando em uma missão de vida. “É um desafio, mas que aprendemos aos poucos”, diz. Segundo o professor, foi seu contato com o teatro e com atores que proporcionou a compreensão do quanto o fôlego retórico e a respiração devem ser respeitados numa tradução teatral. A dificuldade maior é produzir uma poesia feita de contrastes e não um platô estilístico sem os sobressaltos que eram comuns ao verso de Shakespeare.  “O célebre solilóquio de Hamlet (“ser ou não ser”) é um prodígio de sintaxe lenta, com paradas súbitas reflexivas. O tradutor deve ser capaz de equivalê-las em português, alentar ou acelerar o discurso quando necessário, pois é fato que esse é um dos traços mais notáveis de Shakespeare, suas alterações bruscas de velocidade enunciativa”, diz. Outro grande desafio é o famoso “wit” de Shakespeare. “É muito comum o leitor e até mesmo tradutores ressaltarem as dificuldades dos trocadilhos. Eles são importantes, sem dúvida. Entretanto, eu diria: planejar é melhor, ou seja, o mais importante é restabelecer o que poderíamos chamar do “verso prosaico ou falante” que diferencia Shakespeare não apenas da tradição poética de modo geral (inglesa e lusa) como de uma parte considerável de seus contemporâneos.” Para explicar melhor é preciso entrar em detalhes técnicos: chegar à fluidez da fala do teatro poético, sem cair em ritmos ou acentos repetitivos, não é algo muito fácil porque a tradução, em vez de operar em único plano, torna-se sonoramente polirrítmica e escultural. “Por outro lado, há decisões que o tradutor deve fazer. Uso verso? Livre? Decassílabos (dez sílabas métricas)? Dodecassílabos (doze sílabas métricas)? Usei o dodecassílabo polirritmado que, mais longo que o decassílabo em duas sílabas, dá melhor espaço para todas as palavras de cada verso, mas, mais do que isso, permite sequências ritmadas que também são necessárias”, exemplifica Flores Pereira. Segundo o professor, se compararmos a tradução da poesia lírica com a tradução teatral, o modo como definimos esse desafio se altera: embora também o teatro tenha obscuridades (e o de Shakespeare particularmente), sua grande extensão é clara, possui tonalidades, colorações intensas que não devem escapar ao tradutor. “Para a nova a geração de tradutores de Shakespeare também é importante que se inclua na tradução a própria opulência lexical da língua portuguesa, o que muitas vezes faltou em antigas traduções que, por diversas razões métricas, eram obrigadas a pechinchar os termos. Tendo a buscar equivalência lexical, sintática, tonal na minha tradução”, afirma.  Um exemplo dessa opulência está numa fala de Kent, em Rei Lear: “Um patife, um cafajeste, lambedor de carne abocada; um canalha ordinário, arrebicado, raso, amendigado, com três libras e três librés fedidos e meias de casca-grossa! Um calça-frouxa, um choraminga de tribunal; um embusteiro filho da mãe, pimpão de espelho, puxa-saco leva e traz, um amaneirado; um escravo que herdou uma bruaca e que teria feito um bem se virasse um cafetão, mas que é só mistura de patife com mendigo, poltrão e o alcoviteiro, e filho e herdeiro de uma cadela vira-lata. Um tipo em que vou bater até cair em clamorosos berros se negar a menor sílaba desses títulos”. No domínio da prosa – parte constituinte também das peças de Shakespeare – as mesmas qualidades valem. “Gosto de dar o exemplo das falas de Poor Tom, em Rei Lear, que se disfarça de louco, miserável, ente errante pelas estradas e pelos ermos de Inglaterra: ele fala em vários registros.” Porém, busca-se evitar repetir opções de traduções do passado: “É preciso mesmo assim evitar o estereotipado da fala caipira que foram usadas anteriormente, por exemplo, por Millôr Fernandes (1923-2012)”.  A solução, segundo Flores Pereira, nesses casos, foi usar sinonímias estranhas que deram à fala do personagem Poor Tom algo da escrita do grande escritor brasileiro Guimarães Rosa (1908-1967), técnica que permite “evocar a familiaridade com algo que é da ordem do registro popular, sem situá-lo em nenhuma localidade específica do imaginário brasileiro, evitando assim o anacronismo”. Como nesta fala de Edgar Poor Tom: “É o malino encardido, o Tricafutrica: ele exsurge no toque de recolher e errambula até o primeiro cocoricó. Ele traz a catarata, dá vesgueira no olho e acarreta o lábio de lebre, embolora o trigo branco e atormenta as pobres criançuras da terra”. O resultado desse trabalho todo: novas edições que, ao fim e ao cabo, “atualizam” e revigoram a obra de William Shakespeare paras as novas e as futuras gerações. 

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