O mais recente Salão do Livro, realizado em Paris, louvou os poetas portugueses, mas o nome mais comentado e respeitado não estava presente. Trata-se do mesmo senhor que, em 1982, recusou o prestigioso Prêmio do Pen-Clube e, em 1994, não se animou a embolsar os US$ 30 mil do Prêmio Pessoa: aos 70 anos, Herberto Helder tornou-se uma lenda viva, escondido em algum canto de Lisboa. Escritor recluso e avesso a entrevistadores, ele criou, porém, uma obra que não se oferece à leitura: seus poemas não são para ler e sim para sofrer, como se sofre uma experiência ou um acidente. Pretendem ser uma revelação, ao mesmo tempo de loucura e iluminação. Uma boa amostra está em O Corpo o Luxo a Obra, importante lançamento da Iluminuras (160 páginas, R$ 27), com seleção de poemas e prefácio de Jorge Henrique Bastos, além de um posfácio de Maria Lúcia Dal Farra. Herberto Helder é um poeta vizinho do encantamento, escreve Fernando Paixão, na apresentação do livro, que contém um importante panorama de um dos mais reverenciados poetas portugueses contemporâneos, apreciado principalmente pela força de sua poesia encantatória. Nascido em Funchal, na Ilha da Madeira, o poeta português pertence à linhagem dos que buscam na poesia a mediação entre a vida comum e a esfera imaginária do sagrado. Seu primeiro poema publicado data de 1953, em um jornal de Coimbra, A Briosa, cujos colaboradores eram estudantes universitários. No ano seguinte, aparece em uma coletânea, O Arquipélago, iniciando em seguida uma série de colaborações em revistas literárias. Seu primeiro livro, O Amor em Visita, é publicado em 1958, ano em que inicia uma viagem por diversos países europeus (Holanda, França, Bélgica e Dinamarca), onde vive como um errante até ser repatriado, em 1961. Dessa experiência, nascem dois livros: A Colher na Boca e Poemacto. Nessas primeiras obras, observa Fernando Paixão, tinha-se a impressão de que punha em movimento uma poderosa imaginação surrealista, ressaltada pela musicalidade e pelo tom evocativo dos poemas. Mas a coerência e a continuidade de tal prodígio breve fez ver que se tratava de projeto mais ousado. Herberto Helder continuou publicando uma série de livros ao longo dos anos, despertando encantamento e assombramento (Lugar, Os Passos em Volta, O Bebedor Nocturno, Cobra, A Cabeça entre as Mãos, As Magias, Do Mundo), ao mesmo tempo em que saboreava uma vida aventureira. Em 1971, por exemplo, depois de voltar de um novo périplo europeu, viaja para a África e se instala em Angola, onde trabalha como repórter. Lá sofre um acidente de carro e fica hospitalizado durante três meses. Aos poucos, adota um comportamento recluso e não comparece a nenhum evento a que é solicitado: queria ser um poeta sem rosto, como os clássicos da Antiguidade. A foto que preenche a capa do volume lançado pela Iluminuras é um raro momento de exposição. Seu endereço é compartilhado por poucos, pouquíssimos. A poesia, no entanto, continua encantatória. "Joelhos, salsa, lábios, mapa": começa assim um dos seus mais belos poemas - despertado do nada, o verso sugere e acontece, unindo em uma só frase o que é do corpo, da terra e da imaginação.
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