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'A Baleia' arrebata bilheterias

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Por Rodrigo Fonseca
Brendan Fraser dispara como favorito ao Oscar de Melhor Ator com "A Baleia" - Foto: A24

Rodrigo Fonseca Famosa casa de espetáculos do Rio de Janeiro, onde até Shirley MacLaine se apresentou, no início dos anos 1990, o Imperator, hoje conhecido como Centro Cultural João Nogueira, tem uma das projeções mais invejáveis do circuito exibidor brasileiro, numa telona que abriu a semana a serviço de uma produção independente, de baixo orçamento, cujo resultado de bilheteria no país vem sendo de cair o queixo de tão bom que tá: "A Baleia" ("The Whale"). É o favorito ao Oscar de Melhor Ator a se julgar pela avassaladora interpretação de Brendan Fraser, num daqueles comebacks que Hollywood ama de paixão. Ele bombou em 1999 com "A Múmia", caiu fundo no ostracismo na década passada, e retorna triunfante agora. Mas o que conta aqui, em relação ao comovente longa do diretor Darren Aronofsky ("Cisne Negro"), são os números de faturamento no Brasil. O filme apresentou um resultado de 38% de crescimento do primeiro para o segundo final de semana, segundo sua distribuidora, a Califórnia, que deve fechar a semana com um total de 200.000 espectadores. Trata-se do terceiro colocado no ranking atual de nossa nação, atrás só de "Creed III" e de "Quantumania", a nova aventura Homem-Formiga. Levando-se em conta o coeficiente de amargura que Aronofsky tascou no recheio da fita, sua arrecadação é algo de se estourar rojão. Merecidamente. Leitor do "Velho Testamento", referência ativa em seus longas anteriores, como os controversos "mãe!" (2017) e "A Fonte da Vida" (2006), Aronofsky trouxe a literatura para o cetro de uma dramaturgia que vem do teatro, uma vez que "A Baleia" é uma adaptação de uma peça homônima de Samuel D. Hunter. Muitos livros, quase sempre assinados por autores LGBTQIA+, entram em quadro, com citações explícitas a "Folhas de Relva", de Walt Whitman (1819-1892). Mas o farol do cineasta é o prosador que fez do mar sua principal arena e assumiu um cachalote como objeto de um de seus principais exercícios narrativos: Herman Melville (1819-1891). Ele é o farol dentro da ilha em que um dedicado professor de Redação, Charlie (Fraser), transformou seu corpo, beirando 200 quilos e isolando-se do mundo. Melville cunhou frases dignas de anotação. Tem uma que é ideal pra quem ensina o verbo "perseverar", como Charlie faz: "É melhor falhar na originalidade do que ter sucesso na imitação".

Saddie Sink tem uma atuação impecável no papel de Ellie - Foto: Niko Tavernise/Niko Tavernise - © Palouse Rights LLC.

Arriscar-se, na busca por uma voz literária vívida, por um "eu lírico" ativo, é a base do que Charlie diz a estudantes, em aulas via Zoom. Ele leciona online, sem ligar a câmera de seu computador, alegando falha no hardware. A falha é uma desculpa pra incapacidade que ele tem em se aceitar. Há também a dificuldade de se locomover, o que o leva a ser dependente de um andador e de argolas espalhadas pelo teto de sua casa, que ele usa como anteparo pra se encostar e se soltar. Para piorar, ele anda arfando muito, com falta de ar. Encarando dores fortes no peito, Charlie lida mal com a sensação de que sua aparência obesa gere gordofobia em quem cruze seu caminho, encarando-o como uma figura "nojenta". O que mais lhe dói, contudo, não é essa latente rejeição. Nem são os quilos da obesidade mórbida que estão conduzindo-o para a morte, conforme a amiga e enfermeira Liz (Hong Chau, numa afetuosa composição) alerta. O que lhe dói mais profundamente é a incapacidade (aparente) de fazer com que a filha com quem ele pouco tinha contato, Ellie (Sadie Sink, impecável em cena), possa se aceitar no turbilhão hormonal de sua adolescência. A culpa que Charlie carrega não vem da escolha de ter deixado seu casamento com a mãe de Ellie, Mary (Samantha Morton), para se casar com um ex-aluno por quem se apaixonou. A culpa em seu peito entupido de colesterol vem do fato de não ter conseguido fazer o rapaz, seu amado, aceitar-se, livrando-se de todas as ataduras moralistas de seu culto religioso. Culto esse que volta a bater em sua porta, na figura de um missionário (Ty Simpkins), num momento em que Ellie reaparece, pedindo ajuda na produção de seus trabalhos escolares. É um momento no qual a foice do excesso parece pesar sobre sua cabeça.

Os bastidores das filmagens do longa de Aronofsky - Foto: Niko Tavernise/Niko Tavernise - © Palouse Rights, LLC.

"Excesso" é a palavra mais essencial para entender a adaptação da peça homônima de Hunter, uma vez que sua versão para as telas é esculpida por Aronofski, que, aqui, estuda a condição humana pela lente da empatia, de uma forma mais doce do que fazia antes. Desde 1998, quando rasgou cartilhas de convenções cinéfilas ao lançar "Pi", ele concretizou uma reputação singular como "O" cronista de tudo o que é excessivo. Vai do excesso de entorpecentes (em "Réquiem Por Um Sonho") ao excesso de vaidade (visto na obra-prima "The Wrestler - O Lutador", que lhe rendeu o Leão de Ouro em 2008). Diante do calvário de Charlie, Aronofsky decide falar sobre pessoas no limite do aceitável, no transbordamento de seus desejos, no limiar do tolerável. A saúde de Charlie não tolera mais nenhuma das asinhas de frango frito que ele devora, nem as fatias de pizza gotejantes de óleo, repletas de pepperoni, da grife Gambino's, deixadas em sua porta, por um entregador curioso. Mas se exceder é uma forma de ele se proteger e superar obstáculos. É como Melville dizia: "Acredito que meu corpo não passa de um abrigo para meu melhor ser. Na verdade, que leve meu corpo quem quiser, pois ele não é quem eu sou". Indicado ao Oscar de Melhor Maquiagem, o longa conta com um trabalho de caracterização impressionante. Igualmente impactante é luz outonal da fotografia de Matthew Libatique. No Brasil, em meio a todo o sucesso que conquista, "A Baleia" conta com uma excepcional atuação vocal de Guilherme Briggs na versão dublada de Fraser. Periga ser a interpretação mais visceral da carreira do dublador, que cede a voz aos personagens de Fraser há duas décadas. O que ele faz na sequência em que Charlie clama por poder "fazer ao menos uma coisa boa em toda sua vida" é de rasgar miocárdios. Se houver um Oscar da dublagem, a estatueta deve ir pra Briggs.

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