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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

A felicidade não se compra, mas Leandro Hassum ajuda o Brasil a sorrir

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Por Rodrigo Fonseca
Leandro Hassum desafia os códigos dos filmes de Boas Festas em "Tudo Bem No Natal Que Vem"  Foto: Estadão

Rodrigo Fonseca Panetone audiovisual pra ser devorado a dois, "Natal Outra Vez?" (2022), de Mark Alazraki, com Mauricio Ochmann, que está nas cabeças do Top Ten da Netflix, é a versão hispânica de um argumento brilhante de Paulo Cursino. Argumento que o diretor Roberto Santucci, com pleno domínio de seu ferramental estético, transformou em filme em 2020 - um filmaço pop, aliás. "Tudo Bem No Natal Que Vem" garantiu a Leandro Hassum um dos exercícios de interpretação mais tocantes do cinema brasileiro dos últimos anos. Numa cruza do humor com a dor, o astro rei do riso da neochanchada ultrapassa sua própria persona e conversa com os grandes ícones dos longas-metragens natalinos, a começar pelo maior de todos, James Stewart. Não por acaso, Cursino deu a ele o nome Jorge, para que houvesse correspondência (à brasileira) com o George Bailey de Stewart em "A Felicidade Não Se Compra" (1946).

Avesso a maçãs na maionese, cansado da piadinha "é pavê ou pá cumê", inconformado com o uso da uva passa em pratos salgados, Jorge faz de "Tudo Bem No Natal Que Vem" a rabanada mais saborosa dos Netflix Originals. A azeitada dobradinha entre Cursino e Santucci evoca um velho rito midiático desta temporada de festas de fim de ano. Apoiado num trabalho de maquiagem pautado pela delicadeza (assinado por Martín Macías Trujillo) e amparado numa direção de arte primorosa de Rafael Targat, essa joia estrelada pelo Chevy Chase da Ilha do Governador (Hassum) puxa uma lembrança inevitável da história da menina Virginia O'Hanlon Douglas (1889-1971). Ao longo dos anos 1990, em Ramos, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, o professor de Inglês José Ricardo Fazolo costumava presentear estudantes com o Caso Virginia. Ela era a filha de um médico de Nova York, no início do século XIX. Em 1897, a guria mandou uma cartinha para o jornal "The Sun", perguntando: "Papai Noel existe?". À época, os editores resolveram publicar a enquete dela, seguida de uma resposta: "Sim, VIRGÍNIA, o Papai Noel existe. Ele existe tanto quanto o amor e a generosidade e a devoção existem, e você sabe que eles abundam e dão à sua vida sua mais beleza e alegria. Como este mundo seria triste se não existisse o Papai Noel. Seria tão sombrio como se não existissem VIRGINIAS". Aluno do Fazolo, que partia desse episódio do século XIX para congraçar turmas na homilia da humildade, o P de Pop se arrisca a completar: como o mundo seria mais azedo se não houvesse um bom filme de Natal pro fim de ano; e como o cinema brasileiro seria sem graça se não houvesse Leandro Hassum. Da mesma forma, vale cravar: como a Educação seria azeda se não existisse o Fazolo.

A refilmagem do longa de Santucci/Cursino  

Quem teve a sorte de ver Hassum em cena, nos palcos, em "Aracy de Almeida no País da Araca" (2001) ou em "Orlando Silva, o Cantor das Multidões" (2004) tem a medida do reator nuclear que existe por sob seu tom varejão de fazer rir. E, mesmo no riso, ele criou um estilo autoral, na estratégia do comentário. Repare que, ao fim de seus melhores diálogos, ele muda sua entonação e faz um comentário irônico, hilário. Brilha ainda na estratégia do descontrole, onde grita e esbugalha os olhos em uma máscara plástica de múltiplas moldagens. Hassum é o Brasil: a figura pícara que usa a malandragem para debelar os desafios, deslizando na manteiga dos afetos quando o calo da solidão aperta. Hassum é o melhor do humor do Brasil: é deboche e é carinho; é o bacon da farofa Yoki. Basta zapear o trabalho dele na série "Família Paraíso", na TV Globo - Globoplay. Apoiado nos diálogos sagazes de Cursinho, Hassum faz de Jorge uma figura afetivamente rica. Ele explora fronteiras sentimentais de um modo ainda mais radical do que fez na franquia "Até Que a Sorte Nos Separe" (2012-2015). Há, em Hassum, o simbolismo da subjetivação de classes sociais mais pobres que alcançam, na emergência do $, alguma chance de fugir da invisibilidade. O diferencial de "Tudo Bem No Natal Que Vem" é a sacada de olhar para esses novos atores/ atrizes sociais pelo prisma de um trauma pessoal: no caso, uma absoluta rejeição aos folguedos de 24/12. Jorge nasceu no dia de Natal e, como ele mesmo diz, é impossível concorrer com o outro aniversariante da data, o menino Jesus. E ele mantém esse enfado até o fim, embatucado com as ceias de seu clã, enfurnado em conversas por telefone com um pai ausente que, num momento preciso, entra em cena na figura de Daniel Filho, um titã do riso, diretor do rubi "O Casal" (1975). Soa oportuno (e comovente) a opção de chamar um dos realizadores de maior sucesso de público do país, como Daniel, pra contracenar com um campeão de público GG como Hassum. Na trama, um acidente faz com que ele fique preso em loop, sempre na véspera de o Cristo nascer. E a cada volta, descobre algo novo sobre si e sobre a convivência com seus pares, aprendendo com a mulher, Laura (Elisa Pinheiro, impecável em cena), a ter filtro e a saber pedir desculpas.

Elisa Pinheiro e Hassum têm uma química perfeita em cena  Foto: Estadão

Professor Fazolo, aquele lá do Natal de Ramos, dizia que pessoas especiais gravitam entre a paixão e a razão, ansiosas por resultados, como se vê em Jorge. Mas ele também dizia para suas turmas que é necessário dar um passo atrás e saber refletir, saber aprender. É essa a dinâmica desse doce filme. De cada parente chega um aprendizado, sendo a prova mais difícil imposta pela filha, Aninha (Arianne Botelho), um achado do filme. Construído pelo duo Bebeto x Romário do humor nacional (o roteirista Paulo Cursino e o diretor Roberto Santucci) com passes a gol, "Tudo Bem No Natal Que Vem" brinca com a matéria mais preciosa do cinema nos anos 2000/2010: a memória. Lembro, logo existo é o cogito cartesiano do audiovisual, não apenas pela marcha do "recordar é viver", mas pelo exercício político da recordação como um substantivo concreto da afirmação da subjetividade e querência. Nos gramados do pop, o tema rendeu, na década passada, duas obras-primas, ambas de 2004: "Brilho Eterno De Uma Mente Sem Lembranças" e "Como Se Fosse a Primeira Vez". Este último parece ser o farol ideal para se iluminar a dinâmica de Santucci e Cursino, por razões que estão na tela e fora dela. A primeira, quase óbvia, é que ninguém no audiovisual deste país conseguiu ser mais Drew Barrymore na construção de uma figura feminina forte e eivada de amor do que a já citada Elisa Pinheiro. A sequência em que ela, no papel de Laura, combalida pelas cacetadas da vida, olha para Jorge com olhos de panetone Bauducco e diz "eu espero este dia para olhar para trás e encontrar aquele Jorge de dez anos atrás" é de espatifar o peito. É uma atriz em seu apogeu, num equilíbrio raro entre doçura e tensão. Hassum e Elisa fazem um bem danado à nossa alma. "Tudo Bem No Natal Que Vem" merece todas as refilmagens, mas não perde sua essencial relevância. É um filme precioso pra que a gente repense nosso benquerer e pra que a gente repense o papel da comédia - e de suas estrelas - em nossa dramaturgia. Hassum é uma estrela de Belém nesse terreno. Ele nos guia para a excelência. Feliz Natal, galera.

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