RODRIGO FONSECA Há um thriller de ação brasileiro chegando às telas no próximo dia 9. É um filme avassalador em sua maneira de dialogar com as cartilhas de seu filão. É um filme crítico até a medula em relação ao desamparo social provocado pela falência das políticas públicas de bem-estar e segurança. Um filme feroz contra o armamentismo que solapou a nação e a transformou num palco de balas perdidas. Ele se chama "Amado". Dizem ser um "filme policial", mas é um filme de samurai. Uma espécie de "Lobo Solitário", qual o mangá "Lone Wolf and Cub" (1970-1976), de Kazuo Koike e Goseki Kojima. Ele vem do coração legislativo do país, Brasília, e dá a Sérgio Menezes (ator que roubava a cena no musical "Love Story") espaço para mostrar o talento gigante que tem, numa interpretação doída. Em igual medida, Igor Cotrim, o dínamo de "Elvis e Madona" (2010), tem uma ribalta para desfilar maldade, num ensaio sobre a cegueira moral que oblitera o olhar das instituições públicas no país, num visual à la Wilson Grey. Mas não estamos falando de tratados sociológicos e, sim, de um "filme B", um rótulo que coube a joias (qual o primeiro "Mad Max", por exemplo) e contempla produções que fazem, com pouco dinheiro e muita invenção de câmera - a chamada "artesania" -, um pastiche renovador de convenções que o cinemão constrói com milhões. É tipo o lugar que "Jogo Sujo" ("The Stone Killer", 1973), de Michael Winner, teve na dramaturgia cinematográfica americana dos anos 1970. Sua maneira de expor as feridas de exclusão - aquelas que serviam de foco aos filmaços Easy Rider do Cinema Novo dos EUA - é tangenciá-las nas franjas de tramas aparentemente limitadas ao conceito de justiçamento. Mas, essencialmente, o Tempo mostrou que esses Bs eram filmes sobre as imposturas éticas e governamentais que geravam a cultura do vigilantismo. Ou seja, eram filmes sobre o desamparo. E desamparo é o que se vê, agora, na saga do cabo Amado, alimentada a litros de adrenalina por Edu Felistoque e Erik de Castro. Uma adrenalina que não entorpece nossa reflexão e incendeia um debate sobre a chaga das milícias em nossa geografia.
Mas há outra reflexão que brota da batalha do cabo Amado (Menezes, o Itto Ogami da Edo lapidada por Erik e Felistoque) para proteger sua vida depois de desafiar o esquema corrupto do sargento Cunha (Cotrim, com jeitão e bigode de Lee Van Cleef), tira dependente do Caixa Dois das apreensões, batidas e duras que dá. É uma reflexão sobre o lugar do thriller em nossa telona. Sempre que se fala em "cinema de gênero" no Brasil - sobretudo na dificuldade em se realizá-lo e em mantê-lo ativo -, a conversa gravita sobre filmes de terror e, não, sobre todo o prisma de variantes dramáticas, épicas e cômicas que a expressão entre aspas comporta, qual se vê na Literatura, nas HQs, na TV e, em certa medida, no teatro. Sempre que o assunto vem à tona, fala-se muito de Hollywood e suas normas de milhões. Mas, por vezes, esquece-se de que, no fim dos anos 1950, a Itália, inflada de prestígio pelo neorrealismo, percebeu que tinha chance de disputar com as atrações hollywoodianas reconstruindo, à sua maneira, filões que foram lapidados na Califórnia. Foi daí que que veio o spaghetti western (em "Por Um Punhado de Dólares"), o Peplum (filme de gladiadores, de heróis do Olimpo e de guerreiros bíblicos, tipo "Maciste no Vale dos Reis") e o Giallo (o terror de Dario Argento, Mario Bava & cia.). No Brasil da Boca, muitos filmes de gênero plurais foram feitos, do bangue-bangue ("Rogo a Deus e Mando Bala") ao suspense ("Snuff - Vítimas do Prazer"). E ainda há o nosso nordestern, o faroeste de cangaço, que tomou fôlego com a conquista do Prêmio de Melhor Filme de Aventura, no Festival de Cannes, em 1953, por "O Cangaceiro", de Lima Barreto. Mas, um filão em especial costuma ser ignorado, ou tratado como proscrito, por aqui, quando se fala em gênero, que é o "filme de ação". E isso se dá, em parte, pelo ranço que a Era Reagan deixou nessa linhagem narrativa. Mas o Brasil já se aventurou por ela, com primor B, antes de Reagan, nos tempos em que Jece Valadão produzia e estrelava iguarias como "Eu Matei Lúcio Flávio", de 1979. Inclua nessa linhagem "O Marginal" (1974), de Carlos Manga, em que Tarcísio Meira emprestava seu carisma a um tipo talhado pela violência.
Nos anos 2000, o fenômeno "Cidade de Deus" - que completa 20 anos em agosto - gerou uma confusão entre cinema de ação e thriller social, que se estendeu ao ganhador do Urso de Ouro de Berlim em 2008, "Tropa de Elite", e sua sequência multimilionária, de 2010. Nem o Capitão Beto Nascimento nem o Zé Pequeno eram personagens de "filmes de ação". Eles são nódoas sociológicas de uma reflexão sobre as tensões armadas geradas, a partir da ditadura, com o avanço do crime e a impunidade das infrações policiais. São personagens de thriller sociais. Já não se pode dizer o mesmo do subestimado "Federal" (2010), do mesmo Erik de Castro que nos dá "Amado", agora. Ali, ao criar uma espécie de Intocáveis no DF, tendo como vilão o líder de uma falsa seita, Erik explorava códigos ficcionais para propor uma fábula sobre o desarme das engrenagens de harmonia no país. E, como toda fábula, sua tessitura de suspensão de descrença era vetorizada por fatos reais. O mesmo raciocínio passava-se com o virulento "Toro" (2016), de Edu Felistoque, no qual um táxi era o destino de um quase herói. É nessa interseção, entre a fábula e o "Jornal Nacional", que nasce "Amado", alegoria regada a nitroglicerina sobre a miopia que ronda o "proteger e servir". A maneira distanciada com que Sérgio Menezes atua revela todas as contradições que existem na ferocidade de Amado, criando farpas em seu discurso contra "as almas sebosas". Em igual medida, Cotrim injeta humanidade no que seria um mero arquétipo, potencializado por uma fotografia repleta de chiaroscursos - antitética como aquele mundo. E há espaço para um Anjo da História, de rosto choroso diante do horror da bestialidade urbana: a policial magistralmente interpretada por Brenda Lígia (atriz nota 10 e diretora dos sacolejantes "Aqui Jaz" e "Rabutaia"). Ela transborda fraternidade pelo amigo Amado, que viu sua farda simbolizar mortalha (reflexo do momento histórico pelo qual passamos), e explode como panela de pressão frente às tiradas cafajestes de Cunha (Cotrim). Seus extremos são a medida de um povo, o nosso, refém de armas, de brasões e do fantasma miliciano, que é exorcizado neste filme de assombro. Um filme cheio de energia que incomoda por escancarar feridas. Um filme de maturidade técnica de seus realizadores. Que o cinema seja maduro para entender o que ele se propõe a discutir, não a afirmar. É o que grandes filmes fazem.
p.s.: Dois espetáculos, sucessos de público e crítica, têm suas temporadas prorrogadas no Rio de Janeiro: o monólogo "Cora do Rio Vermelho", em cartaz no Teatro Poeirinha, e a comédia "Pai Ilegal", no Teatro Dulcina. "Cora do Rio Vermelho", com Raquel Penner, faz um passeio pela vida e obra da poeta, contista e doceira Cora Coralina, reunindo textos e poemas que falam sobre a força feminina e a alma da mulher brasileira. E o espetáculo "Pai Ilegal", protagonizado por Pedro Monteiro, é desenvolvido a partir de uma criativa premissa do autor Ulisses Mattos - num futuro próximo, todo homem que quiser ser pai vai precisar tirar um certificado de permissão. Quem for pego sem essa licença é preso, caso do personagem Gabriel. Vale a pena acompanhar o desenrolar dessa história.
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