RODRIGO FONSECA Desde que projetou "Carlos", de Olivier Assayas, em 2010, Cannes vem abrindo gradual espaço para séries de TV em sua programação, incluindo projetos de ganhadores da Palma de Ouro da década de 1990, como David Lynch ("Coração Selvagem") e Jane Campion ("O Piano"). Logo, não haveria razão de deixar o filme de 3 horas de duração (mas disfarçado de minissérie) feito por Marco Bellocchio de fora da seleção deste ano, o que deu a "Esterno Notte" a fama de ser o primeiro achado da Croisette em 2022. Beira o esplendor o domínio que o cineasta italiano de 82 anos - laureado com a Palma Honorária em 2021 - tem sobre as ferramentas narrativas da reconstituição histórica. Em 2019, ele arrancou aplausos da Croisette com o thriller de máfia "O Traidor", recém-lançado em circuito nacional, com Maria Fernanda Cândido em seu elenco. Agora, o diretor de cults como "De Punhos Cerrados" (1965) retorna ao tema que já havia explorado em "Bom Dia, Noite", pelo qual ganhou aa láurea de Melhor Roteiro ao fim do Festival de Veneza, em 2003: as Brigadas Vermelhas. Esse era o nome da organização paramilitar de guerrilha comunista italiana formada em 1969 no movimento estudantil.
Um fator específico intriga Bellocchio: a operação imputada historicamente às Brigadas e datada de 16 de março de 1978, na qual o grupo sequestrou Aldo Moro, ex-primeiro-ministro e presidente da Democracia Cristã. Após um longo período de cativeiro e de negociações sem sucesso com o governo, a organização teria decidido pela execução do sequestrado. Aldo foi encontrado assassinado no porta-malas de um carro no dia 9 de maio de 1978, no coração de Roma, a meio caminho entre a sede da Democracia Cristã e o Partido Comunista. Em "Esterno Notte", Bellocchio recria esse contexto de época em seis atos, começando pela cartografia da situação política da Itália em 1978, recontada com o apoio de um elenco em estado de graça, cujo pilar é Toni Servillo (o Gep Gambardella de "A Grande Beleza") no papel do Papa Paulo VI. Quem vive Aldo Moro é Fabrizio Gifuni. A fotografia, repleta de chiaroscuros, sem o esturricado realismo habitual do diretor (quebrado há 20 anos, no esplendoroso "A Hora da Religião"), é assinada por Francesco Di Giacomo (de "Martin Eden"). Nesse projeto de tensíssima montagem, voltamos ao ano de 1978 e, nele, a Itália é devastada pela guerra: o primeiro governo apoiado pelo Partido Comunista (PCI) na História Ocidental está prestes a chegar ao Poder, em uma aliança histórica com o tradicional bastião do conservadorismo da nação, os democratas-cristãos (DC). Aldo Moro, Presidente da DC, é o principal apoiador deste acordo. Mas, no próprio dia da cerimônia de posse desta nova formação governamental, ele é sequestrado numa emboscada. Sua detenção se estende por 55 dias. São 55 dias de esperança, medo, negociação, fracasso, boas intenções e más ações. São 55 dias que acabam em tragédia, revisitada por Bellocchio com liberdades ficcionais de uma poesia rascante. Lembra "Vincere", seu filmaço de 2009 sobre Mussollini. Foi um acerto de Cannes ter começado com essa joia, logo após o divertido "Coupez!", de Michel Hazanavicius. O evento segue até o dia 28 de maio.
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