RODRIGO FONSECA Escolhido para representar a Itália na disputa por uma vaga na corrida pelo Oscar com o deslumbrante "Nostalgia", indicado à Palma de Ouro, o napolitano Mario Martone volta a comover plateias, agora na Berlinale, com um documentário em que presta tributo a um de seus heróis artísticos: Massimo Troisi (1953-1994). O astro e diretor italiano de "O Carteiro e o Poeta", cult pelo qual foi indicado postumamente ao Oscar em 1996, ganhou uma comovida carta de amor em forma de filme com a projeção do documentário "Laggiù Qualcuno Mi Ama" (em inglês "Massimo Troisi: Somebody Down There Likes Me"). As sessões do .doc de Martone hoje já estão lotadas à força do boca a boca positivo recebido pela produção, idealizada para mostrar a novas gerações a relevância de um intérprete brilhante, que sabia empregar uma simplicidade aparente como disfarce para o improviso e a invenção. "Massimo sempre permaneceu vivo na consciência coletiva porque foi um grande ator e um grande artista", disse Martone em declaração publicada na "Variety". Nascido nos arredores de Nápoles e morto em Óstia, aos 41 anos, por complicações cardíacas, pouco antes de receber uma indicação à estatueta hollywoodiana, Troisi dividiu o troféu Copa Volpi de Melhor Ator com Marcello Mastroianni, em 1989, por "Que Horas São?" ("Che ora è?"), de Ettore Scola, com quem fez ainda "Splendor" (1989) e "A Viagem do Capitão Tornado" (1990). Martone prova em seu filme o quanto foi decisiva a contribuição de Massimo para a depuração do audiovisual italiano nos anos 1980 (um momento de declínio para a pátria de Fellini) se estende a experiências dele como realizador, com um espírito cronista que pode ser conferido em "Só Nos Resta Chorar", codirigido por Roberto Benigni, em 1984, e "Ricomincio Da Tre", de 1981.
Coroado há 30 anos com o Prêmio Especial do Júri de Veneza, por "Morte di un Matematico Napoletano" (1992), Martone concorreu em Cannes, em 1995, com "L'Amore Molesto", e lá voltou, via Un Certain Regard, em 1998, com "Teatro di Guerra". Mas nada do que fez nos anos 1990 ou nas duas últimas décadas se compara ao que ele entrega no .doc sobre Troisi e no drama com elementos de thriller de máfia "Nostalgia". Esse último brilhou nas telas de Paris, em circuito e teve, na Croisette, na competição de Cannes, um efeito de "descoberta", embora o mais correto, diante do currículo do realizador, seria falar em "redescoberta", em "reinvenção", seja dele mesmo, seja a dos códigos cinematográficos de sua pátria. Pátria que nos deu gigantes: Rossellini, De Sica, Fellini, Visconti, Antonioni, Pietro Germi, Pier Paolo Pasolini, Elio Petri, Lina Wertmüller, Valerio Zurlini. Pátria próspera na seara dos filmes de gênero, seja no terror (com o giallo de Dario Argento), no faroeste (com as macarronadas de Sergio Leone, Tonino Valerii e Sergio Corbucci) e nos épicos de gladiador (o Peplum). Pátria que minguou por um bom tempo, de 1984 a 2008, vendo suas fontes de fomento à produção cinematográfica escassearem. Até campeões de bilheteria como Carlo Pedersoli e Mario Girotti (conhecidos como Bud Spencer e Terence Hill) deixaram de fazer os longas da franquia "Trinity", sob a guilhotina de Berlusconi, restando visibilidade a poucos cineastas. Giuseppe Tornatore (com "Cinema Paradiso") e Roberto Benigni (com "A Vida É Bela") souberam bem flertar com as receitas da Academia de Artes e Ciências de Hollywood. Nanni Moretti se edificou entre comédias políticas ("O Crocodilo") e melodramas ("O Quatro do Filho").
Resistentes do movimento moderno também se mantiveram firmes, como o finado Bernardo Bertolucci, que foi fazer uma incursão pelo Oriente e filmar em outras línguas; e o até hoje imparável Marco Bellocchio ("Vincere"). Mas esses dois são crias dos anos 1960. Martone, não. Ele é um moderno tardio, que não se fez na liquidez da pós-modernidade. Mas ele teve a sagacidade de entender parte das chagas desse nosso tempo, como é o caso da gentrificação; do emasculamento; do sucateamento da honra; da destruição dos signos de fé, por apostasia ou por banalização. E esse sagaz olhar rendeu a Cannes um presente em forma de 1h57 de filme, universalíssimo. Passa-se em Nápoles, mas poderia ser em Bonsucesso. Ou na Penha. Pierfrancesco Favino - que filmou "O Traidor" de Bellocchio no RJ - é o aríete com o qual Martone avança rumo à consagração e a um merecido Prêmio do Júri, com seus ângulos de câmera vívidos e inquietos, explorando a profundidade de campo da Nápoles para onde seu protagonista regressa. Ele tem 95% de "Nostalgia" pra si. Os 5% que sobram se dividem entre o padre Rega (Francesco di Leva) e o bandido Oreste (Tommaso Ragno, um sósia do brilhante Roney Villela). Este foi o maior amigo que Felice, construtor e dono de empreiteira no Egito, vivido por Pierfrancesco, teve em seus anos de formação. No início do longa, Felice regressa à sua cidade natal par cuidar da mãe doente. É um terço de arrancada doce, onde a câmera do fotógrafo Paolo Carneva gira em espasmos, caçando um quadro que fuja da obviedade. Caça, caça... e consegue. Sempre. Passada essa introdução com ares melodramáticos, de mamãe e filho, uma pergunta feita por Felice muda as rédeas da narrativa: "Onde está Oreste?". No passado, os dois eram unha e carne, até um crime mudar tudo. Ao tentar entender o que foi feito daquele amor de ontem, amor de bromance, de pura amizade, Felice começa a se (re)encaixar numa paisagem que abandonou há 40 anos. Mas nem sempre a paisagem nos quer de volta.
Vai ter Berlinale até o dia 26 de fevereiro. Até o momento ainda não há apostas acerca de um potencial favorito, apesar da boa acolhida ao concorrente canadense "BlackBerry", sobre boom da telefonia móvel, apoiado no carisma de Jay Baruchel. O longa de Sean Penn sobre a Ucrânia, o documentário "Superpower", teve uma recepção beeeem azeda por parte da crítica. Espera-se que a passagem de "Ingeborg Bachmann - Journey Into the Desert", de Margarethe von Trotta, neste fim de semana, mude esse quadro. Aos 80 anos, a diretora de diretora de "Hannah Arendt - Ideias Que Chocaram o Mundo" (2012) segue fiel a seu cinema biográfico e escala Vicky Krieps para interpretar a escritora e poeta austríaca Ingeborg Bachmann (1926-1973, autora de "O Tempo Adiado". Seu lema: "A verdade é razoável para o homem".
Neste sábado, o festival vai exibir o clássico dos clássicos da "Sessão da Tarde": a comédia "Curtindo a Vida Adoidado" ("Ferris Bueller's Day Off", 1986), de John Hughes (1950-2009), que integra uma retrospectiva de olhares sobre a juventude, com títulos escolhidos por cineastas e estrelas. O cult de Hughes custou US$ 5 milhões e faturou US$ 70 milhões. Seu roteiro narra as peripécias de um popularíssimo estudante, Ferris (Broderick, então com 24 anos), que dribla todas as normas escolares, alegando estar doente, para matar aula. Leva consigo a namorada, Sloane (Mia Sara), e o melhor amigo, Cameron (Alan Ruck). Já existe uma torcida alemã formada em torno de uma atração da mostra Geração: "A Greyhound of a Girl", que Enzo d'Alò filmou com produção de Luxemburgo e da Itália. Nunca Berlim abriu-se tanto aos filmes animados como se vê em 2023. Uma das apostas do setor é este drama afetivo, feito em coprodução com a Itália, com base num romance de Roddy Doyle. Na trama, a menina Mary vai embarcar numa reeducação pela pedra, em seu processo de amadurecimento, ao notar que há algo de grave com a saúde de sua avó. Outro título já badaladinho é "Kill Boksoon", de Byun Sung-hyun, da Coreia do Sul. Esse periga ser o filme mais pop de Berlim este ano. É um thriller de ação à moda "Round 6". Sua trama acompanha a dupla jornada de Gil, vivida por Jeon Do-yeon, atriz laureada em Cannes, em 2007, por "Sol Secreto". Ao mesmo tempo em que gasta energia cuidando de sua filha "aborrescente", ela se desdobra em contratos nada simples de empreitada em sua profissão não oficial: matadora de aluguel. A decisão de não cumprir uma dessa missões faz dela um alvo.
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