RODRIGO FONSECA Cinco meses depois de sua dupla vitória em San Sebastián, "Assim Como no Céu" ("Du Som Er I Himlen"), da dinamarquesa Tea Lindeburg, agora se lambuza de elogios no Festival de Roterdã com seu olhar sobre o amadurecimento feminino. Após uma aclamada trajetória em curtas e séries de TV, entre elas o cult europeu "Equinox", de 2020, sua realizadora consagrou-se como promessa de renovação para as estéticas audiovisuais escandinavas, referendada pelo troféu de melhor direção em Donostia, na Espanha, em setembro. Sua estrela, Flora Ofelia Hofmann Lindahl, também saiu do evento ibérico contemplada com troféus: a Concha de Ouro de melhor interpretação, que dividiu (por empate) com a americana Jessica Chastain (laureada por "Os Olhos de Tammy Faye"). Tea recria a realidade da Dinamarca dos 1800, na ilha de Fiónia (Fyn), uma das maiores do país. Na trama, Flora Ofelia vive Lise, uma adolescente de tem 14 anos. Ela é a mais velha entre os irmãos e também a primeira da família a frequentar a escola, o que a enche de esperanças para o futuro. Porém, quando sua mãe entra em trabalho de parto, a garota não demora a perceber que algo está errado. Conforme a noite avança e o parto prossegue, com urros de dor, Lise começa a compreender que esse dia pode terminar com ela na posição de mulher da casa, tendo sua juventude atropelada por uma tragédia. "Flora Ofelia tinha 15 anos durante as filmagens e eu incorporo a questão da menstruação, do desabrochar do corpo, da descoberta do desejo. E eu parto da adolescência para abrir uma discussão sobre pertencimento. Eu o uso a cor vermelho ao longo de todo o filme como uma metáfora para o sangue menstrual, um sangue inaugural... e uma metáfora para o sangue da morte. O que mais me interessa nessa narrativa é acompanhar a mudança de uma menina em adulta, por meio de uma tragédia", disse a diretora ao P de Pop. Marcel Zyskind é quem assina a impressionante fotografia de "Assim Como no Céu", que tjem arrebatado Roterdã pela delicada composição de Flora Ofelia. "Tudo passa pelo acerto na escalação e Flora Ofelia foi um achado por traduzir uma certa crueza em seu modo de expressar como uma jovem mulher encara o mundo ao seu redor", de Tea. "O silêncio numa narrativa como essa soa mais alto do que qualquer ruído".
Entre os curtas de Roterdã, é difícil não ir às lágrimas com o trabalho que a genial atriz portuguesa Ágata de Pinho executa à frete e atrás das câmeras em "Azul", fotografada por Leonor Teles. Ágata já atuou com som e fúria em "Estrada para o Céu" (2020), Outra Vida (2019) e Depois do Silêncio (2017). Mas nada se compara ao desempenho na angustiante saga de Ara, uma jovem que encasquetou que vai desaparecer quando completar 28 anos. É uma atuação que gravita entre o trauma e a catarse. Entre os 14 longas-metragens concorrentes ao troféu Tiger, dado à competição oficial de Roterdã, o favorito é "Eami", um poema etnográfico da paraguaia Paz Encina, que mistura documentário, fábula, antropologia e um ensaio geopolítico sobre sororidade. A diretora de "Hamaca Paraguaya" (2006) registra a realidade de lutas do povo Ayoreo-Totobiegosode, que vive no Chaco, vasta região florestal que faz fronteira entre o país da cineasta, a Bolívia e a Argentina. O título de seu novo longa, Eami significa "floresta" na língua dos Ayoreo. Significa também "mundo". Para aquela população, as árvores, os animais e as plantas que os rodeiam há séculos são tudo o que eles conhecem. Mas eles encaram agora um desmatamento que ameaça tudo o que têm. Para retratar essa tragédia, Paz recorre ao mito de uma menina que vira uma deusa-pássaro. O único outro concorrente que parece reverberar forte no burburinho cinéfilo é uma produção de Israel: "Kafka for Kids". Com direção de Roee Rosen, esse musical com sequências de animação impressiona pelo virtuosismo de sua direção de arte e pela ironia de seu roteiro, cuja abrasividade está presente também nas letras de suas canções. O filme é construído como um programa infantil, nos moldes de um "Castelo Rá-Tim-Bum", cuja temática é a prosa do autor de "A Metamorfose". Roterdã termina no domingo.
p.s.: Coroado na sexta-feira, nos EUA, com um prêmio coletivo no Festival de Sundance, para seu elenco, do qual faz parte a cantora Zélia Duncan, o belíssimo filme "Uma Paciência Selvagem Nos Trouxe Até Aqui", dirigido por Érica Sarmet, foi Melhor Curta-Metragem da 25ª edição da Mostra de Tiradentes. Ganhou lá também o Prêmio Canal Brasil de Curtas. Na trama, Zélia vive Vange, que, cansada de solidão, vai a uma festa lésbica pela primeira vez. Sua narrativa mistura imagens de arquivo de Niterói referentes a eventos LGBTQ+s de três décadas atrás num debate sobre a afirmação do desejo e da luta contra a homofobia. Para os jurados, a "bravura política e estética com que produz um sentido de comunidade e mesmo de futuridade na imaginação da vida em conjunto, materializando o desejo sapatão no sexo e na construção de uma coletividade", foram alguns dos motivos de premiação ao curta, assim como "o modo como constrói uma narrativa afetiva pautada pelo desejo e pelo encontro de gerações lésbicas, projetando um entrelaçamento de temporalidades nas fricções desse encontro". É um filme comovente.
p.s.2: Igualmente comovente foi ver a Mostra de Tiradentes premiar "Os Primeiros Soldados", de Rodrigo de Oliveira. Idealizado pela produtora capixaba Pique-Bandeira Filmes, o longa tem (uma devastadora) Renata Carvalho, Johnny Massaro, Clara Choveaux, Higor Campagnaro e Vitor Camilo como protagonistas e se passa em Vitória, no Espírito Santo, no ano de 1983. A trama decorre quando a primeira onda da epidemia de AIDS afeta a rotina de dois rapazes e uma mulher trans, que se unem na tentativa de sobreviver ao temido e (então) desconhecido vírus. A sequência regada a Ney Matogrosso é de rasgar o coração.
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