Rodrigo Fonseca Um dos filmes mais perturbadores de 2019 ganha uma sobrevida agora nas grandes do Prime Video da Amazon, na web (via streaming): "Vidro" ("Glass"). Sua bilheteria: 246 milhões. O sucesso assegurou respeitabilidade a seu realizador, M. Night Shyamalan, hoje envolvido com a série "Servant" e com o longa "Labor of Love". Há uma frase seminal em seu "O sexto sentido" (1999), mais sútil e lúdica do que o desabafo que o celebrizou ("I see dead people!"), na qual se aprende: "Na vida, algumas magias podem ser real". Nos últimos 20 anos, período no qual estabeleceu-se como um dos realizadores mais ousados de Hollywood, mesmo quando a Meca do cinemão o esnobou, Manoj Nelliyattu Shyamalan - nascido em Mahé, Pondicherry, na Índia, em 1970 - nunca abriu mão da crença no mágico, no fantástico, no ilusório. É Algo que está em seu longa de título vítreo.
Até "Sinais" (2002), com Mel Gibson, a fantasia tinha lugar encantador em sua filmografia. Depois de "A vila" (2004), sua obra-prima, ilusão passou a simbolizar opressão em seu autoralíssimo cinema, de uma carpintaria que sempre se apegou a sutileza. Não por acaso, seu olhar passou a gravitar para o suspense, para o terror ou para o thriller psicológico, como se vê no seminal "Vidro": uma vez que o sobrenatural passa a ser um sintoma de dominação, sua representação dá à fabulação tons sombrios. Inicialmente comparado a Alfred Hitchcock, por sua habilidade de assustar pela insinuação, Shyamalan hoje se assemelha mais de outro diretor, não por acaso, um discípulo do realizador de "Psicose": Brian De Palma. Há um quê do velho De Palma, de "Irmãs diabólicas" (1972) e "Carrie, a estranha" (1976), no terceiro tomo da trilogia iniciada em "Corpo fechado" (2000) e continuada pelo fenômeno de bilheteria "Fragmentado" (2017). Os dois protagonistas do primeiro, o segurança David Dunn (um Bruce Willis grisalho e apagado) e o gênio do crime Elijah Price, o Sr. Vidro (Samuel L. Jackson, luminoso), se unem ao personagem principal do outro longa, a Besta, psicopata com um transtorno de personalidade traduzido em dezenas de heterônimos encarnados com maestria por James McAvoy. Este ganhou uma precisa versão brasileira, na voz do dublador Mckeidy Lisita.
Aparentemente, a junção de Dunn, Price e da Besta seria apenas um encontro de três párias, que acreditam ser super-humanos. Mas, numa narrativa sinuosa, salpicada de viradas, com a fotografia de luz bruxuleante de Mike Gioulakis (de "Corrente do Mal"), a figura coringa da Dra. Ellie, diabólica personagem criada por Sarah Paulson (dublada aqui por Angelica Borges), percebemos estar diante de uma alegoria política. Expert no estudo das narrativas fabulares, e no valor que a vilania tem para elas, Shyamalan nos dá um ensaio sobre controle, refletindo sobre o papel da imagem na manipulação de vontades. É um filme lento, soturno, mas arrebatador. No Brasil, Marcio Simões dubla Samuel e Hércules Franco dublou Willis (muito bem).
p.s.: Falando em Shyamalan, a Globo exibe hoje seu subestimado "Fim dos Tempos" ("The Happening", 2008), em sessão à 1h15. A sinopse da emissora: em questão de minutos, estranhas mortes ocorrem em várias das principais cidades dos Estados Unidos, ligada a fenômenos da Natureza, conectadas a plantas. Sem saber o que está ocorrendo, o professor Elliot Moore (Mark Wahlberg) apenas quer encontrar um meio de escapar do misterioso fenômeno. Apesar dele e de sua esposa, Alma (Zooey Deschanel), estarem em plena crise conjugal, os dois decidem partir para as fazendas da Pensilvânia, atrás de salvação. p.s.2: Como foi lindo ver Wesley Snipes no palco do Globo de Ouro. Indigno é vê-lo ser esquecido nas premiações, após o show que ele deu em "Meu Nome É Dolemite". Se a Marvel virou o império que é, nas telonas, todo o seu sucesso cinematográfico começou com ele, em "Blade, o Caçador de Vampiros" (1998).
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