RODRIGO FONSECA Numa conjuntura de sintonia entre tempos, desejos cinéfilos e a História, a escolha de Vincent Lindon para presidir o júri oficial da competição principal do 75º Festival de Cannes (17 a 28 de maio) coincidiu com o anúncio do Instituto Moreira Salles (IMS), no Rio e em São Paulo, de dar o espaço nobre de sua telona ao ganhador da Palma de Ouro de 2021, que tem o ator francês em seu elenco: "Titane". No ar na streaminguesfera na grade da MUBI, a produção dirigida por Julia Ducournau vai ser exibida neste sábado, em programa duplo com "Cristine, o Carro Assassino" (1983), de John Carpenter. No RJ, as sessões de ambos serão respectivamente às 16h e às 18h deste 30 de abril. Em Sampa, o de Carpenter é 19h20 e o de Julia às 21h30. Quem coordena a curadoria de cinema do instituto é o pernambucano Kleber Mendonça Filho, realizador de "Aquarius" (2016) e de "Bacurau" (com Juliano Dornelles), que foi laureado em solo cannoise em 2019 com o Prêmio do Júri. Carpenteriano de carteirinha, ele fez parte do júri da Croisette que deu a Palma pra Ducournau. Se você ainda não viu o filmaço dela, no www.mubi.com, vale muito conferi-lo numa projeção presencial em sala, assim como é válido entender tudo o que Kleber anda fazendo no templo dos Moreira Salles. Rolam por lá exibições de "Vitalina Varela", que rendeu o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno a Pedro Costa; "Madalena", de Madiano Macherti, consagrado em Roterdã e San Sebastián; "Vaga Carne", um média memorável de Grace Passô e Ricardo Alves Jr.; "Pequena Mamãe", de Céline Sciamma, indicado ao Urso de Ouro da Berlinale; e o thriller cearense "Fortaleza Hotel", de Armando Praça. Na semana que vem, entra por lá a distopia "Medida Provisória", o fenômeno popular (e político) antirracista de Lázaro Ramos. E vem por aí uma mostra chamada "Máscaras". Nela vai ter o aclamado "Medusa", de Anita Rocha da Silveira (laureado com o Troféu Redentor de 2021 no Festival do Rio); "A Hora do Show" ("Bamboozled", 2000), de um Spike Lee cheio de fúria; "Solon" (2016), de Clarissa Campolino; "Movimento" (2020), de Gabriel Martins; "Eron, o Protético Morcego" (2014), dos Irmãos Carvalho; e "O Fantasma do Paraíso" ("Phantom of the Paradise", 1974), de Brian De Palma.
Mas a cereja da grade de abril é "Titane". Sua protagonista é uma psicopata com placas de titânio na cabeça, Alexia (a ótima atriz Agathe Rousselle), que engravida de um carro (!) e expele óleo diesel da vagina. Vincent Lindon é o chefe do corpo de bombeiros cujo filho desapareceu ainda menino. Ele passa anos tentando encontrar o garoto. Quando Alexia precisa fugir da polícia, ela vê um retrato falado do guri sumido que especula como estaria agora, já adulto. Ela nota semelhanças entre aquela figura e ela e decide assumir a identidade do rapaz. Tudo é bizarro, sim, mas é arrebatador e avesso às convenções morais destes tempos medievais. Na entrevista a seguir, Kleber Mendonça Filho fala ao Estadão como a escolha de filmes do IMS se pauta e adianta novidades, como é o caso de uma mostra em tributo ao realizador Jorge Bodanzky (de "Iracema, Uma Transa Amazônica"), que estará hoje no Canal Brasil, às 20h, no programa É Tudo Verdade, para debater o .doc "Utopia Distopia" com o crítico e curador Amir Labaki.
O que essa sessão Julia Ducournau + John Carpenter pode simbolizar para as reflexões de cinema de gênero? KLEBER MEDONÇA FILHO: Desde que assisti ao "Titane", em Cannes, eu lembrei muito do "Christine", do Carpenter. É claro que eu lembrei também do "Crash", do Cronenberg. Mas eu penso que o "Christine" talvez seja uma associação menos evidentes. É um grande filme americano e que fala muito sobre a relação que o mundo todo - e os americanos em específico - tem com carros. "Titane" é um filme sobre a relação de corpo com a máquina. É um prazer muito grande da cinefilia associar filmes. Quando você faz isso programando uma sala, eu sinto que a curadoria se torna muito atraente. É importante uma sala ter um ponto de vista, ter uma linha de juntar filmes e eu penso que é um é uma união muito boa a de "Titane" e "Christine", que são filmes separados por 38 anos. Tem muita gente da geração recente que não conhece o "Christine". Eu acho que trazer uma cópia de fora, com toda a qualidade de imagem e de som da Sony e da Columbia, e poder exibi-la numa tela grande é muito bom. Lembrando sempre que a programação do IMS é em São Paulo e no Rio. A sala fica na Paulista e, no Rio, na Gávea.Qual é o desenho atual do cinema do IMS, pós pandemia? KLEBER MEDONÇA FILHO: As duas salas do IMS estão religando os motores. Foram dois anos de salas fechadas com a pandemia. A gente voltou agora em abril e estamos retomando uma programação que segue os parâmetros que já seguíamos, ou seja, abrindo espaço para o cinema brasileiro que a gente defende. Tem cinema contemporâneo estrangeiro, que a gente defende também. E, como sempre, a gente segue exibindo material de arquivo e clássicos, além de abrir espaço para mostras que podem vir da nossa própria invenção. Às vezes, a gente recebe mostras que são convidadas ou que são parceiras, como, por exemplo, o É Tudo Verdade. Foi ele que reabriu as salas no início de abril. Mas, agora em maio, temos uma seleção especial de filmes. São 30 filmes, curtas, clipes e longas numa seleção que se chama "Máscaras". É uma revisão da ideia da máscara no cinema, no audiovisual. É extremamente diversa se você vir a lista de realizadoras e realizadores, de épocas também diferentes do cinema. Há filmes que, talvez, dentro dessa perspectiva da máscara, não eram algo tão claros, e há outros que são bem evidentes, como "O Homem Elefante", por exemplo. Mas tem o filme que eu acho sensacional do Ivan Cardoso: "O Colírio do Corman Me Deixou Louco". Tem muita coisa recente e muita coisa antiga. Tem Spike Lee. Tem Anita Rocha da Silveira... É uma mostra que está bem forte e eu gostei muito do trailer feito pelo Mateus Farias, que fez os trailers de vários filmes. Acho que expressa muito bem o que a mostra vai ser. Minha equipe é Thiago Gallego, Lígia Gabarra e Barbara Rangel. Entra agora também a Márcia Vaz.
Existe alguma chance de você fazer um tributo aos dez anos de morte dos diretores Paulo Cezar Saraceni e de Carlos Reichenbach? KLEBER MEDONÇA FILHO: Você foi no ponto que é uma sempre uma preocupação, inclusive nesse momento pelo qual o cinema brasileiro passou, da crise na Cinemateca Brasileira. Acho que essa situação expôs isso de uma maneira muito forte. O IMS está equipado para exibir todos os formatos. Filme 35 milímetros de alta qualidade, arquivos digitais, DVD... mas é sempre um desafio encontrar materiais de boa qualidade técnica do cinema brasileiro. O Canal Brasil tem feito um trabalho muito importante ao escanear muita coisa que está desatualizada. embora não sejam ainda restaurações como o cinema brasileiro merece. Uma programação passa obrigatoriamente pela capacidade que o curador tem de encontrar e conseguir cópias. Isso às vezes acontece, mas você as encontra e elas não são exibíveis. Ou são cópias de preservação, que não podem ser exibidas. Eu tenho muita dificuldade de programar um DVD ou uma cópia precária. Mas, às vezes, a gente discute que a programação de uma cópia muito precária, num determinado momento, pode ser o ponto de partida para se poder discutir a preservação. Mas fazer isso sempre me desanima muito. Como realizador, eu sinto que os filmes precisam ser apresentados de uma forma boa e digna. Existem vários produtores e várias produtoras, várias realizadoras e realizadores que não concordam com o fato de o filme passar numa situação técnica ruim. A gente está trabalhando agora numa retrospectiva do Jorge Bodanzky, que está fazendo 80 anos. E essa é sempre uma questão. Mas como ele é tão prolífico, há como se navegar e fazer um recorte bom de muita coisa que ele fez.
p.s.: A premiada Renato Vieira Cia de Dança está em cartaz com seu novo espetáculo, "Suíte Rock - Para loucos e amantes", no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, por mais duas semanas. No dia 1º de maio, haverá sessão com acessibilidade (tradução em libras com bate papo no final) e, no dia 5 de maio, não haverá apresentação. Com direção de Renato Vieira e codireção de Bruno Cezario, o espetáculo reúne sucessos de Led Zeppelin, Supertramp, Pink Floyd, Queen, Sting, R.E.M e The Rolling Stones, que são executados ao vivo por um quarteto de cordas, celebrando a união entre o rock e a música de concerto. O novo trabalho tem o desafio de juntar em cena bailarinos e músicos em novas expressões artísticas que reflitam sobre as relações e desejos que surgem no mundo pós-confinamento.
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