Rodrigo Fonseca Habemus "Malmkrog", enfim, graças à MUBI, que mete mais um golaço ao adentrar pela seara da Primavera Romena. Cineastas da Romênia dominam a cena autoral combativa do cinema independente há exatamente 16 anos, quando o diretor Cristi Puiu lançou uma comédia de humor azedo, sobre as agruras de ancião às voltas com as irregularidades do sistema de saúde, que inflamou Cannes: "A Morte do Sr. Lazarescu" (2005). Ali nasceu uma estética singular, não apenas na Europa, mas em todo o planisfério da cinefilia, centrada em tramas irônicas, filmadas em locações sem o apoio de estúdios, focada sempre na corrupção estatal. Não por acaso, diante da contínua maturação dessa linha estética, veio dessa turma o primeiro grande filme sobre a pandemia: "Bad Luck Banging or Loony Porn", de Radu Jude, que conquistou o Urso de Ouro do Festival de Berlim, há um mês. Aliás foi lá na capital alemã que nasceu uma das flores mais belas dessa estação de transgressores, plantada e colhida pelo próprio Puiu. Exibido em fevereiro do ano passado na Berlinale, esta produção de 3h40 (!) saiu de lá com o prêmio de melhor direção da mostra Encontros, angariando afagos da imprensa especializada. O carinho dessa recepção gerou um ardoroso boca a boca, que hoje se espalha pelo circuito virtual da streaminguesfera, no www.mubi.com, pilotado aqui por Juliana Barbieri. "Existe a História e existem histórias. Fiquei no meio termo entre as duas, entre o absoluto da memória e a relativização da vivência e da observação", disse Puiu ao P de Pop, em Berlim. "Tentei a sorte na Berlinale, fora da competição oficial principal, para evitar tensões e expectativas, buscando uma vitrine paralela, com a certeza de que gerei um corpo estranho, mais exótico do que muitas das estranhezas experimentais que estava acostumado a fazer na relação com as narrativas convencionais. Mas era importante fazer uma reflexão sobre o Poder desafiando as manhas do Tempo. Sempre é bem-vindo pensar o continente em que estamos ancorados a partir das relações de controle e dos conflitos de classe".
Com uma direção de arte estonteante, "Malmkrog" fala do conflito entre um proprietário de terras, um político, uma condessa, um general e sua esposa durante um jantar. Eles se reúnem em uma espaçosa mansão a fim de conversa. No papo, discutem morte, guerra, progresso e moralidade. Mas, à medida que o tempo passa, a discussão torna-se mais séria e aquecida. "Há muita inércia entre as classes dominantes. E é desse fixismo que eu parto para exumar uma série de neuroses da Europa e suas sequelas morais", disse o cineasta de 54 anos, aclamado pelos críticos também pelo drama "Sieranevada" (2016). "Tenho uma predileção pelas artes plásticas ao arquitetar a construção de um plano, de uma sequência. Eu uso sempre pinturas como referência e não filmes, pois busco uma riqueza imagética, quase física, tátil. No meu cinema, texto acompanha e reflete textura, jamais sobrepujando-a. Há que se valorizar a palavra, mas não a partir de uma relação senhorial. Mesmo nesse filme, no qual conversa-se muito. Usei como base da linguagem quadros do Leste Europeu do século XIX em que cores expressam estados de poder, mas como diferentes camadas, como se fossem uma boneca russa. O vermelho descreve a realeza. Uma gravata azul sugere uma algema histórica. Cinema é mais do que imagem, é mais do que atuação, é mais do que roteiro: é um estado de espírito onde o resultado não é dado pelo artista, mas pelo olhar do público e por sua reflexão. E, aqui, eu acredito ter torturado o público". Considerado uma das iguarias mais polêmicas do cardápio da Berlinale nº 70, o filme de Puiu é proustiano até a medula. A referência a Marcel Proust (1871-1922), que escreveu "Em Busca do Tempo Perdido" (1913-1927), vem do fato de o autor ter dilatado a representação da temporalidade na arte. Puiu faz algo parecido em "Malmkrog", que nasce da prosa filosófica do escritor Vladimir Solovyov (1853-1900). "Existem livros que nos embalam e existem os que nos trazem revelações. Quando li esse romance, suas palavras me abalaram, mas me deram um vislumbre de transcendência, uma visão do estado de coisas na Europa. Quero compartilhá-la com as plateias", diz Puiu. "Ser generoso não é dar o que se tem, é dar o que sé é. E esse é o cinema que eu busco: o da doação".
p.s.: Tem Jason Statham, o muso da porrada, na "Tela Quente" desta segunda, na Globo: o ótimo "Assassino a Preço Fixo 2: A Ressurreição" ("Mechanic: Ressurrection", 2016). O alemão Dennis Gansel (de "A Onda") pilota a direção do segundo tomo da franquia derivada de um cult com Charles Bronson (1921-2003). O longa original, de 2011, custou US$ 40 milhões e somou US$ 76 nas bilheterias, mobilizando uma fortuna em venda e aluguel de DVDs, além de agitar a programação de canais abertos e fechados. Vale lembrar que seu protagonista tem em seu currículo uma receita de faturamento estimada em US$ 1,6 bilhão, à força dos sucessos que protagonizou. Esta parte dois também custou US$ 40 milhões e arrecadou US$ 125,7 milhões. Nela, o matador Arthur Bishop (Statham) é obrigado a reativar o seu lado criminoso quando o amor de sua vida, Gina (papel de Jessica Alba), é sequestrada. Nas mãos do inimigo, Bishop é forçado a viajar pelo mundo para completar três impossíveis assassinatos e fazer o que sabe melhor: fingir que foram acidentes. Na excepcional dublagem, Statham ganha a voz de Armando Tiraboschi, o que sempre é uma garantia de excelência. É um dos dubladores mais talentosos do país, sendo uma referência de criatividade entre os atores de voz de SP. A sessão no Plimplim começa às 23h45.
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