RODRIGO FONSECA Um mês depois de ter aberto o Festival do Rio, numa histórica sessão no Cine Odeon, "Império da Luz" ("Empire of Light"), o mais recente longa-metragem do inglês Sam(uel Alexander) Mendes abre outro evento essencial ao cinema da América Latina, agora na Argentina: Mar Del Plata. Criado em 1954, congelado pela ditadura em 1970 e reiniciado em 1996, a mais prestigiada celebração audiovisual de nossos hermanos inicia nesta quinta sua 37ª edição. A cidade é parte da província de Buenos Aires, as fica a 410 km do centro da capital de sua pátria - que hoje comemora o sucesso de "Argentina, 1985" na streaminguesfera. Lançado no Brasil na Amazon Prime, o thriller jurídico em que Ricardo Darín leva torturadores de farda ao um tribunal será exibido em telona para a população mardelplatense neste fim de semana. E vai ter homenagem para Darín por aqui, aumentando a torcida para que ele venha a ser indicado a uma estatueta de Melhor Ator pela produção de Santiago Mitre. Produção laureada com o Prêmio da Crítica em Veneza e com o Prêmio de Juri Popular em San Sebastián. Tá na programação também um fenômeno portenho: "30 Noches Com Mi Ex", uma comédia estrelada e dirigida por Adrián Suar, que fez sorrir o circuito exibidor de sua pátria com uma arrecadação invejável, beirando 700 mil pagantes logo após sua estreia. Pilar Gamboa estrela essa trama sobre reconciliação, ao lado de Suar.
Na competição oficial do evento - que tem no júri a atriz Dolores Fonzi, os diretores Alexandre Koberidze e Joe Swanberg, a programadora Inge Stache, e jornalista Alberto Lechuga -, o Brasil está no páreo com "Saudade Faz Morada" Aqui Dentro", de Haroldo Borges. Concorrem com ele títulos dos EUA ("How To Blow Up a Pipeline", de Daniel Goldhaber, e "There There", de Andrew Bujalski); de Portugal ("O Trio Em Mi Bemol", de Rita Azevedo Gomes); e da Suíça ("Réduit", de Leon Schwitter), entre outros países. "Mato Seco em Chamas", rodado nas quebradas do Distrito Federal por Joana Pimenta e Adirley Queirós, também está na seleção de Mar Del Plata, assim como "Filme Particular", de Janaina Nagata.
Há encontros marcados com cineastas autoralíssimos como Patricia Mazuy ("Boliche Saturno") e John McTiernan ("Duro de Matar") e com a atriz Cecilia Roth. No Panorama Internacional, rola uma série de estreias de grifes autorais, como "Walk Up", do sul-coreano Hong Sangsoo, e "Un Beau Matin", da francesa Mia Hansen-Løve. Mas só se fala de Sam Mendes por lá. E com razão. Numa entrevista que concedeu ao Globo, em 2009, numa época de escassez de alento em sua carreira anfíbia, capaz de respirar no palco e na tela grande, o cineasta britânico, cujos avós vêm da população portuguesa de Trinidad, usou a recriação histórica de seu precioso "Foi Apenas Um Sonho" ("Revolutionary Road", 2008) para dizer: "Toda versão que o cinema faz do passado é sempre uma contingência ficcional alegórica, que se baseia apenas em achismos sobre o que foi o Ontem, pois qualquer leitura dele não substitui a falta empírica de convivência com a matéria pretérita". Ou seja: filmes de época são sempre supostamente reais, sempre submissos a uma variável do X da hipótese. Fiel a esse preceito o homem que deu à franquia 007 sua obra-prima, "Skyfall", há dez anos, investe em "Império da Luz" como um sopro de intimismo. É uma volta para um período pouco contextualizado pelo cinema britânico: o período do início da década de 1980 em que o regime de cinto apertado da economia de Thatcher irrigou a lavoura do ódio. Seu "Empire of Light" vai até 1981, numa cidadezinha litorânea da Inglaterra. Por lá, a sala de projeção Empire é a maior diversão e, também, um analgésico para os males da falta de pertencimento afetivo. Temos um potente ataque ao racismo feito por Mendes ao expor a fora como skinheads daqueles anos atacavam as populações negras. Michael Ward brilha com sua precisão de algebrista ao compor o aspirante a universitário Stephen, que vai trabalhar no time de funcionários do Empire e segue a intolerância acossá-lo. Mas, naquele quase multiplex de duas salas, pertencente ao Sr. Ellis (Colin Firth, com desenvoltura de mosqueteiro), o rapaz vai provar do amor também, enchendo de viço os dias vazios de Hilary, papel que pode (e deve) levar Olivia Colman a mais um Oscar. Ela traz ao longa ainda uma discussão sobre crise nervosa, inerente a uma faceta psiquiátrica obliterada pela desconexão com o real. Mas o que mais salta aos olhos é a maneira como Mendes - calcado numa fotografia grandiloquente de Roger Deakins ¬- aproveita a arena central de sua dramaturgia - um complexo exibidor - para esboçar um "Cinema Paradiso" particular muito peculiar.
Homenageando clássicos e cults dos anos 1980, citando de "Irmãos Cara-de-pau" a "Touro Indomável, ele revive uma década a qual se dá pouco valor, fazendo uma ode a Hal Ashby (1929-1988), o Carlos Drummond de Andrade do Cinema Novo americano, a tal de Nova Hollywood ou Easy Rider Generation. Sua obra, que explode no imaginário cinéfilo com "Ensina-me a Viver" (1971) e "Amargo Regresso" (1978), dá argamassa para muitas ideias que movem seus contemporâneos, Scorsese e Spielberg, acerca do retrato do querer. "Ashby foi o cronista do sentimento, que amou como a gente não foi capaz de amar", disse Spielberg ao P de Pop, em 2012. Dele, Mendes puxa um filme em especial, que não pode ser citado aqui para não estragar surpresas. Uma surpresa que firma a personagem de Colman como uma "Rosa Púrpura do Cairo" às avessas. Nela não há o apreço pela imagem filmada e, sim, pela poesia, de Auden & cia. Mas o cinematógrafo vai sorrir pra ela, como fez para a plateia de um inflado Odeon. Ah... de Ashby rola até Cat Stevens, no gatilho para uma gramática de quereres. Uma das atrações mais esperadas de Mar Del Plata, em 2022, é "Coma", de Bertrand Bonello. Usando bonecas Barbie e bonecos Ken, o realizador de "Zombi Child" (2019) faz o filme mais divertido de sua carreira, mesclando uma parte experimental, com vídeos sobre a pandemia, e uma cômica porção narrativa, em que esses brinquedos falam com vozes de ídolos do cinema francês, simulando DRs de casal. Louis Garrel é um dos atores que emprestou o gogó à produção, falando coisas sem sentido sobre o querer. É de rachar de rir. O festival argentino termina no dia 19, com a entrega do troféu Ástor e uma série de outras láureas. Há 19 anos, essa horaria foi confiada a Domingos Oliveira (1935-2019), que ganhou ainda o prêmio de Melhor Ator com "Separações".
p.s.: A atriz Wanderlucy Bezerra cresceu no interior de Pernambuco, com muito carinho, mas desde cedo conheceu as adversidades da vida: "pobre", "nordestina", "dentuça" e "feia" foram alguns dos muitos adjetivos recebidos na infância. Teve momentos de tristeza, mas nunca deixou de sonhar com dias melhores e em construir uma carreira de atriz. E é nessa mistura agridoce de uma vida de conquistas e adversidades que ela escreveu "A Filha da Virgem", monólogo autobiográfico em que atua sob direção de Sandra Calaça e Leo Carnevale e supervisão de Luiz Carlos Vasconcelos. A peça faz apresentações gratuitas em Queimados (no Teatro Metodista, 08/11, às 17h) e no Centro do Rio (Teatro Alcione Araújo - Biblioteca Parque Estadual, dias 06 e 07/12, às 15h). O espetáculo tem patrocínio do Governo do Estado do Rio de Janeiro, Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Rio de Janeiro, através do Edital Retomada Cultural RJ 2.
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