RODRIGO FONSECA Uns nove meses depois de ter conquistado um par de Oscars por "A Forma da Água" (Leão de Ouro de 2017), o mexicano Guillermo Del Toro estava quase desistindo de filmar "Pinóquio" - a animação mais arrebatadora de um ano que vem sendo deslumbrado pelo "Perlimps", de Alê Abreu - quando a Netflix ofereceu a ele meios de filmar, bancando um elenco estelar, com Tilda Swinton, Christoph Waltz e John Turturro. A previsão é de que o filme vá pra plataforma do N maiúsculo no dia 9 de dezembro. Mas neste sábado, o 37º Festival de Mar Del Plata teve a chance de apresentar a autoralíssima releitura do realizador de "Hellboy" (2004) para o livro "Pinocchio" (1883), de Carlo Collodi Lorenzini (1826-1890) e Enrico Mazzanti (1850-1910). O que se vê é um desbunde. É musical, é aventura... tudo em stop motion (a técnica de "Fuga das Galinhas", na qual objetos são animados quadro a quadro, aparentando movimento)... e tudo com o rastro autoral funéreo e sóbrio de Del Toro. A direção de arte tem visual amadeirado, em sintonia com seu protagonista, um boneco de pau que ganha vida. E é uma direção que foge totalmente de qualquer marca em comum com o desenho animado da Disney de 1940 - e com a sua infeliz recriação live action feita por Robert Zemeckis, este ano, para o streaming de Mickey Mouse. O Disney + tem lá o insosso Geppetto de Tom Hanks. Já o Geppeto da Netflix é dionisíaco do começo ao fim. E, nele, Pinóquio parece mais o Groot de "Guardiões da Galáxia" do que com a figura com visual de estudante de liceu apresentada por Walt Disney há 82 anos. E tudo se passa no contexto da Itália fascista da II Guerra Mundial.
Em 2018, ao ser convidado para uma masterclass no Festival de Marrakech, Del Toro explicou o que pretendia (e fez): "Vou levar a história do boneco de madeira que precisa se humanizar para poder ser amado para o contexto do fascismo italiano, para a Itália de Mussolini. Será uma fábula política pois precisamos mais do que nunca de metáforas. É por meio de parábolas que as religiões se edificam. E, neste momento em que a Humanidade vive numa guerra de ficções, a partir das fake News que são inventadas nas redes sociais, produzindo uma lógica onde tudo é maniqueísta, uma parábola humanista pode trazer outros conceitos. Pinóquio sempre me fascinou por encarnar a imperfeição, não apenas no ato de mentir, mas por ser uma espécie de Frankenstein de pau, um monstro típico daqueles que eu adoro". O que o cineasta - numa codireção com Mark Gustafson - faz com Pinóquio é algo similar à operação estética feita por Francis Ford Coppola com o Conde Dracula, há 30 anos. Até Gary Oldman aparecer, ora de coque branco, ora de cartola e óculos escuros, no papel do empalador da Transilvânia, o signo que traduzia o vampiro era uma figura de terno e capa, como Bela Lugosi (1882-1956) o eternizou em 1931. Coppola promoveu uma ressignificação. Del Toro faz o mesmo, apoiado nua discussão sobre a História da Itália em que Il Duce em pessoa, ou seja, Mussolini, cruza com Pinóquio.
E tudo nos é narrado por Sebastián J. Cricket, o Grilo Falante, esplendidamente interpretado por Ewan McGregor, só com recursos de voz. Mas que voz! São dele as melhores canções e os melhores diálogos, ainda que Cristoph Waltz também brilhe como o mestre das marionetes Volpe. Nos acordes de Alexandre Desplat, os dois cantam que é uma beleza. E David Bradley também brilha no elenco, fazendo de Geppetto uma figura trágica. Talhada para as estatuetas da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, em 2023, o Pinóquio de Del Toro em nada ofusca a recente (e bem autoral) versão de Matteo Garrone, com Roberto Benigni de Geppetto, lançada durante a Berlinale de 2020. São filmes que coexistem sem canibalização. Rola Festival de Mar Del Plata até 13 de novembro, na Argentina.
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