RODRIGO FONSECA Dirigido por um cineasta habitualmente associado à gargalhada (Felipe Joffily), mas cuja obra começou rasgando a hipocrisia Zona Sul Maravilha do Rio de Janeiro (com "Ódiquê!", de 2004), "Nas Ondas Da Fé" deixa um mal-estar que Omeprazol algum atenua em seu eixo final. Ali, um refluxo de controvérsias inunda a sessão, mas comprova sua relevância - em seu incômodo. À luz da fotografia madura de Marcelo Brasil, respeitosa com o ar de crônica de costumes que areja o roteiro de Lusa Silvestre, o longa-metragem produzido por Augusto Casé faz a gente ruminar sequências de digestão difícil, no desenho um tanto heroico de seu protagonista, Hickson. Esse ruminar fomenta uma importante discussão sobre como as populações de credo evangélico são representadas em nosso audiovisual. Não se trata de um exemplar do chamado "cinema parábola", linhagem existente desde 1910, voltada para a evangelização, como se viu, por aqui - ainda que em religiões distintas - em "Maria - Mãe Do Filho De Deus" (2003) e em "Nosso Lar" (2010). O alinhamento de Joffily seria maior com o belo "Chico Xavier" (2010), de Daniel Filho, que olha para um fenômeno religioso com distanciamento e busca fracioná-lo a partir de seus vértices de maior humanidade, sem componentes divinos, sem teologia, na base do antropocentrismo. Joffily olha para o culto de uma assembleia chamada Igreja Internacional dos 12 Apóstolos "de fora", sem exotismos, mas com dúvidas. É um processo racional, que, a dado ponto, descola o longa de nossa expectativa de estamos diante de uma neochanchada. Não é. Há espaço para esgares, mas são poucos. Existe uma parentela entre o trabalho de Joffily é "Fé Demais Não Cheira Bem" ("Leap of Faith", 1992), com Steve Martin, ainda que este seja um exercício humorístico mais assertivo na busca pela risada, na construção de piadas.
Ritos cristãos já foram tratados com poesia em nosso cinema, sobretudo neste século, seja no documentário (caso de "A Gente", de Aly Muritiba) ou na ficção, com "Linha de Passe" (2008), de Daniela Thomas e Walter Salles, e o seminal "Éden" (2012), de Bruno Safadi. Da mesma forma como acontece nesses longas, porém sem o mesmo ensejo de lirismo, Joffily enquadra os cultos sob uma perspectiva sociológica, associada à noção de uma possível ascendência na pirâmide financeira. Técnico em computadores, dono de um serviço de mensagens por megafones, Hickson é casado com a cabelereira Jéssika, numa relação de dez anos. Os dois são pobres, ligados a uma classe média baixa do subúrbio, e se amam, apesar das dificuldades de um lar calorento. Mas a chance que ele recebe de testar suas habilidades vocais de locução, numa rádio evangelizadora, garante ao casal a chance de vencer, ou seja, de lucrar. Lucrar muito, e bem rápido.
Um dos maiores talentos cômicos de sua geração, Letícia Lima dá à figura de Jéssika camadas profundas de sensibilidade, poetizando cada gesto dela, com o máximo de delicadeza. Faz dela uma mulher forte, empoderada, desejante e sempre companheira. Já Hickson carrega consigo o coeficiente de lealdade (ao passado, aos amores, às amizades) que todo suburbano tem. O P de Pop, nascido em Bonsucesso e refugiado na Penha, viu ali muitas pertinências. Mas há uma questão: Marcelo Adnet, intérprete desse Jimmy Swaggart de Curicica, não parece dar a ele inquietudes de quem, vindo da pobreza, encontra na manipulação da crença alheia um meio de progredir. Os muitos valores afetivos do personagem não parecem condizentes com a sanha de sucesso que ele adquire e que, em nenhum momento, demonstram sinal de arrependimento, de pesar, de culpa. A falta que essas sensações causam vem do fato de que ele não é um evangelizador por vocação ou por crença. Hickson não é um santo, é alguém que fareja uma oportunidade e a abraça. Assim como se via com Elmer Gantry, personagem de Burt Lancaster no espetacular drama "Entre Deus e o Pecado" (1960) - hoje em cartaz na Amazon Prime -, Hickson é só um varejista, um mascate que vende reinos nos Céus ao custo de "notas amassadas e encardidas de R$ 2". Mas não é o que Adnet faz parecer. A certeza de uma conduta errática que Lancaster dava a Grantry não se encontra em Adnet. Encontra-se, pelo contrário, a certeza. A certeza de alguém que ganha o pão na hóstia da Palavra, rezando por um populismo bem parecido com aquele que gerou um certo Messias que nos governou por quatro anos. Nisso, o filme dá medo.
Uma vez que Lusa Silvestre consegue entrar em cada curva dramática (da escrita de roteiro) sempre na mão certa, o filme se sustenta bem como um estudo sobre as políticas internas de uma instituição religiosa. É um estudo que escancara os afluentes mercadológicos por trás de uma igreja. O mesmo não pode se dizer sua suposta dimensão humorística, pois o tom de comédia ali é microscópico, mesmo se visto numa sala grande, como a do Cinemark Carioca, no RJ, onde o P de Pop foi vê-lo. O dono da rádio cristã dos 12 Apóstolos vivido por Otávio Müller dá um show de confecção dramática ao mostrar a liderança de um veículo de comunicação que se propõe a evangelizar. Numa encarnação perfeita da velhacaria, Tonico Pereira também se destaca como o líder do grupo religioso onde Hickson vira locutor e, depois, pregador.
Numa arena criada para festejar o Bem, como aquele culto apregoa ser, existe o Mal. A Maldade é encarnada por (um inspirado) Thelmo Fernandes, no papel do apóstolo Adriano. Seus ciúmes (dignos de Iago), ao ver a popularidade de Hickson, vão jogar o personagem de Adnet num valão de (supostos) erros e de acusações. É mais ou menos o que se passava com o Gantry de Burt Lancaster, no clássico de Richard Brooks. Mas Gantry tinha a consciência do que era: gente, gente que faz, mas, falha. Hickson, não. Ele se vê (e parece ser visto pelo filme) sob um prisma heroico de redenção, até arranhar a questão do Poder em uma sequência pós-créditos imperdível, ainda que sem aquela graça esperada. Caso essa "graça" fosse trocada por "ironia", a digestão de "Nas Ondas Da Fé" seria mais suave. Não é. Mas não é o caso de se ver isso como uma falha e, sim, como um espelho da falta de suavidade dos tempos atuais. Daí a necessidade de falar sobre o filme.
Existem sequências que são especialmente intrigantes na fricção entre o roteiro de Lusa e a direção de Joffily. Há um trecho do longa em que Hickson entra numa prisão, a fim de negociar uma trégua em uma rebelião, a pedido de seus superiores clericais. É uma referência histórica à interferência de pastores em bolsões de crime. Ali, Adnet liberta os diabos de seu talento e (se) transcende, equalizando a temperatura e a pressão de seu personagem. E na continuidade dessa sequência, aparece uma figura ainda mais perturbadora, talvez a mais inquietante de todo o filme de Joffily: o agente do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar (Bope) vivido pelo ator Michel Melamede. O bardo fala-a-dor que nos presenteou com peças teatrais como "Regurgitofagia" (2003) esculpe uma dimensão áspera (precisa) para traduzir o discurso de incômodo das forças fardadas com entidades humanistas, de direitos humanos. É um discurso capaz de transbordar o pensamento "bolsominion", evocando, uma vez mais, o "messianismo" que nos assombrou. É uma evocação que nos alerta para assombrações, para lendas urbanos de um Brasil onde o corpo do Cristo flui em FM.
AS fotos deste post são de Peter Wrede.
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