Rodrigo Fonseca Tava apinhada de gente a sessão das 19h, de sábado, de "Ninguém É Ninguém", no Kinoplex Norte Shopping, no RJ, com poltronas recheadas de gente curiosa por uma trama conduzida com um apuro louvável das técnicas do melodrama, mescladas a elementos sobrenaturais de tom religioso explícito. O esmero do elenco, com notável desempenho de Rocco Pitanga, é o motor de arranque e a força de sustentação primeira do voo narrativo conduzido sob a direção do cineasta Wagner de Assis. Um voo sob a égide de um filão muito muito particular, presente e recorrente na História, nos cinemas, desde os anos 1910: o chamado "filme parábola". Seu papel simbólico: oferecer ao espectador homilias catequizantes em forma de tramas com moral demarcada. É, de longe, o filme mais maduro de Assis (de "Nosso Lar") como artesão, mesmo em sazonais derrapadas de ritmo e de um uso desnecessário de certos movimentos de câmera. Mesmo alguns efeitos especiais que parecem um tanto pedestres, quando analisados à luz da corrida tecnológica do audiovisual, ganham um charme semiótico único num enredo que fala de fantasmagoria, usando sombras esfumaçadas como signos de obsessores. São artimanhas plásticas que Wagner emprega com sagacidade, sob a fotografia apolínea de Kika Cunha (sóbria e sábia no uso da paleta de cores), apoiado no talento agigantado de Carol Castro e de Danton Mello para implosões e explosões. Não por acaso, o público parecia dançar no balanço dos sons e da fúria trocados por ele nessa versão pra telona da literatura de Zíbia Gasparetto. Quem viu "Veneza" (2019), de Miguel Falabella, sabe a extensão do olhar de Capitu que Carol sabe construir em sua máscara trágica bem dilatável. É sempre um aprendizado ver como ela molda espinhos narrativos em flores de sentido, na construção de mulheres calejadas. Danton emprega a sabedoria de seus 20 anos de cinema - iniciados com "Benjamin", em 2003 - para construir - com uma parceira de cena tão sagaz - um estudo dos males em metástase de relações abusivas e viciadas. Há todo o componente kardecista de Zíbia, conduzido muito bem nas cenas com Luiz Antonio Pillar como um avatar de Luz. Mas o que dá ao longa-metragem sua potência mais criadora está no estudo que Wagner promove do amor adoentado. Nisso, o casal encarnado por Rocco (com maestria) e Paloma Bernardi também reflete bem. Paloma linka o filme ao cult hollywoodiano "Atração Fatal" (1987) em sua construção da obsessão.
Tenso do começo ao fim, "Ninguém é de Ninguém" espelha duas relações amorosas que vivem sob a ameaça de rachadura. De um lado está o casal Gabriela (Carol) e Roberto (Danton), com filha e filho pequenos. Roberto encara a falência, como construtor de obras, ao ser roubado pelo sócio, e quem passa a ser o sustento a casa é Gabriela. Os primeiros indícios do machismo cego brotam daí, de um senso de competitividade doméstico. Já o outro casal, endinheirado, é composto pelo Dr. Renato (Pitanga, em seu melhor trabalho nas telas desde "Era Uma Vez...", de 2008) e sua esposa Gioconda (Bernardi). A possessividade de Gioconda rui o castelo lindo em que os dois vivem, também com duas crianças. Conforme esses dois pares vão sendo trançados no roteiro, mentiras, tragédias e espíritos zombeteiros passam a se misturar aos dois, gerando catástrofes que parecem imparáveis. Isso até a fé da empregada de Gabriela, a maternal Nicete (Renata Castro Barbosa, impecável), dar um alerta para o contágio das sombras. Metafísica, realismo e metanarrativas oriundas de convenções de telenovela se encontram com harmonia no longa, que se impõe ainda na presença de Stepan Nercessian no papel de um investigador particular. A forma por vezes bubalina com que o personagem de Stepan avança nos percalços, qual um búfalo furioso, é carregada de indignação, ressaltando todos os saberes de um astro em estado de graça. Que bela surpresa vem do Além... e da imaginação autoral de Wagner.
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