Rodrigo Fonseca Marco da representação cinematográfica da violência nacional, tanto a do crime organizado quanto a da corrupção policial, "Lúcio Flávio, o Passageiro da Agonia", adaptação do "romance reportagem" homônimo de José Louzeiro (1932-2017), visto por cerca de 5,4 milhões de pagantes em 1978, vai ser exibido pelo Instituto Moreira Salles (IMS-RJ), da Gávea, no Rio, nesta madrugada, às 18h. Seu realizador, Hector Babenco (1946-2016), teve seus feitos celebrados este mês no centro cultural que conta com a curadoria do diretor Kleber Mendonça Filho. Lá será exibido nesta quarta a mostra sobre Hector exibe "Pixote - A Lei do Mais Fraco", ganhador do Leopardo de Prata de Locarno em 1981.
Atração desta noite, a versão para as telas da saga do ladrão Lúcio Flávio Vilar Lyrio (1944-1975) impressiona até hoje por seu hiper-realismo seco. Reginaldo Faria saiu do Festival de Taormina, na Itália, com um prêmio de melhor ator por seu desempenho. O site da Cinemateca Brasileira (instituição que merece nossa atenção e respeito) usa a seguinte sinopse para definir o longa-metragem, que é um marco do thriller social brasileiro: "Enfoca as ligações entre ladrões e policiais. Lúcio Flávio é um bandido famoso que empreende fugas e ações espetaculares. Seu bando é trazido por um detetive que acobertava suas ações, que acaba sendo denunciado por Lúcio numa reunião com a imprensa. É oferecido um passaporte para fugir do país e não denunciar o policial; entretanto ao saber que seu irmão foi morto, ele recusa. Ao voltar para sua cela, é executado à facadas". É importante que se ressalte a vigorosa atuação de Ana Maria Magalhães como Janice, a paixão de Lúcio. Já Paulo César Pereio rouba a cena como Moretti, tira de caráter duvidoso que acossa o personagem de Faria.
Amparado pelo bisturi da fotografia de Lauro Escorel, Babenco conseguiu unir espetáculo e reflexão em sua observação da realidade policial brasileira. Raras vezes, até aquela data, uma troca de tiros foi retratada com tamanho rigor plástico de enquadramentos nas telas nacionais. O P de Pop colaborou com o livro da Abraccine sobre os melhores longas nacionais de todos os tempos escrevendo assim: "Só 'O Assalto ao Trem Pagador', lançado por Roberto Farias em 1962, teve igual potência. Mas ali, tratava-se de um filme sintomático da escolástica cinematográfica que estabelecer-se-ia na América Latina a partir de então: o Cinema Novo, no qual o discurso é mais importante do que qualquer jornada heroica. No caso de Babenco, não há filiação geracional, nem projeto ético de grupos. Há um esforço individual de representação dos jogos e convenções de aparências capazes de sustentar a interseção entre bandidagem e governo militar. A sequência - nos primeiros trinta minutos - do achaque de Bechara (Ivan Cândido) e 132 (Milton Gonçalves, perfeito em cena) a Dondinho (Grande Otelo), tratando um ancião negro como escória, joga especiarias sociológicas neste cozido amargo, entrando racismo adentro e aprofundando a percepção da exclusão da pobreza. É menos uma historinha de romantização da marginalidade e mais um ensaio sobre os saldos da ditadura, chocado no ninho da cobra. Babenco foi ameaçado, teve sua casa metralhada, mas nada disso lhe serviu de mordaça. O filme entrou em circuito com o referendo de melhor filme na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo". A tensa montagem é de Silvio Renoldi. A trilha sonora é de John Neschling.
Coroado com o lucro comercial, o longa deu frutos. Dele saíram (o seminal) "República dos Assassinos" (1979), de Miguel Faria Jr. e (a amanteigada pipoca) "Eu Matei Lúcio Flávio" (também de 1979), de Antônio Calmon. Mais do que gerar rebentos, ele gerou História: a partir dele, a memória do banditismo social brasileiro não limitou-se aos cangaceiros do nordestern, ganhando a selva urbana. Temos, na tela um "Máquina Mortífera" sociológico, para repensar as relações de poder na senda do crime.
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