RODRIGO FONSECA Uma das narrativas de ficção mais esperadas pelo cinema brasileiro contemporâneo, para ser vista nas salas de exibição, em 2023 foi laureada com o prêmio de Melhor Fotografia no Tallinn Black Nights Film Festival, na Estônia, no sábado passado: "O Rio do Desejo". O troféu ficou com Adrian Teijido, que fotografou "Marighella" (2019) e "Medida Provisória" (2020), entre outros marcos sul-americanos. A direção do longa é de Sérgio Machado, cineasta egresso da Bahia, aclamado em Cannes, em 2005 com "Cidade Baixa", e famoso por documentários e séries (como "Os Irmãos Freitas"). A produção é dos irmãos Fabiano e Caio Gullane. Em terras estonianas, a presidência do júri de Tallinn esteve por conta da cineasta húngara Ildikó Enyedi (de "Body and Soul"), que elegeu como Melhor Filme a comédia islandesa "Driving Mum", de Hilmar Oddsson. Na premiação, Machado, acompanhado do ator Daniel de Oliveira e dos produtores Rodrigo Castelar e Fabiano Gullane, fez uma homenagem presidente recém-eleito Lula, celebrando os novos ventos que soprarão no país em 2023. A produção é baseada na literatura de Milton Hatoum. É decalcada do conto "O Adeus do Comandante", do livro "A Cidade Ilhada". No elenco, além de Daniel, encontram-se talentos como Sophie Charlotte, Gabriel Leone, Rômulo Braga, Jorge Paz e Coco Chiarella. Sua trama é uma ciranda de quereres. Ao se apaixonar pela bela e misteriosa Anaíra (papel de Sophie), Dalberto (Oliveira) abandona seu trabalho na polícia e se torna comandante de um barco. O casal passa a viver na casa que Dalberto divide com os dois irmãos, às margens do Rio Negro. Essa vida flui bem até Dalberto ser obrigado a se arriscar em uma longa viagem rio acima. Em meio a essa jornada, desejos proibidos vêm à tona. Enquanto Dalmo (Rômulo), o irmão mais velho, luta para controlar a atração que sente pela cunhada, Anaíra e Armando, o caçula, vivido por Gabriel Leone, aproximam-se caudalosamente. A volta de Dalberto reúne, sob o mesmo teto, os três irmãos apaixonados pela mesma mulher. Na entrevista a seguir, Machado explica ao Estadão o que foi buscar na prosa de Hatoum e adianta os passos de sua estreia nas longas de animação, com "A Arca de Noé", baseada na obra poética de Vinícius de Moraes.
Qual foi o retrato do Brasil amazonense que você levou para Tallinn? Sérgio Machado: Na apresentação da longa no festival, falei sobre o quanto era curioso filmar uma história na Amazônia calorenta e húmida e lançá-la num frio de europeu de - 7 graus. A recepção foi excelente. Fomos bastante aplaudidos e todos ficaram para o Q&A depois do filme. As outras sessões também estão todas esgotadas. Depois, houve um coquetel com salgadinhos e doces brasileiros oferecido pela embaixada. Os estonianos não deixaram sobrar nenhuma coxinha ou brigadeiro e me fizeram mais perguntas, a se destacar algumas bem interessantes. Gostaram da música e se impressionaram com a fotografia e com a visceralidade do elenco. Fiquei feliz porque mais tarde pude ler as críticas, todas elas muito entusiasmadas. Adrian Teijido, que foi um parceirão durante a filmagem, acabou premiado por sua direção de fotografia.
O que levou à prosa de Milton Hatoum e o que te faz permanecer na geografia dele? Sérgio Machado: Já conhecia bem a obra do nosso craque amazonense. Na época em que eu estava lançando "Cidade Baixa", meu primeiro longa de ficção, Walter Salles me deu de presente de aniversário três livros de uma vez só: "Dois Irmãos", "Cinzas do Norte" e "Relatos de um Certo Oriente". Li um seguido do outro. Virei fã incondicional e já sonhava em adaptar algo dele desde aquela época. Procurei o Milton não só para conseguir os direitos, mas para convidá-lo para escrever o roteiro junto comigo. Ele indicou a Maria Camargo - grande conhecedora de sua obra - para se juntar a nós na empreitada. O Milton alegou que não conhecia as técnicas de roteiro, mas se dispôs a escrever outros contos que falavam sobre o que acontece antes e depois da história que foi publicada. Os novos contos escritos por ele eram tão bons quanto o original e foram a base para o filme. Mais tarde o venezuelano George Walker Torres se juntou na escritura do roteiro. Uma coisa curiosa é que o Luiz Schwarcz, editor do Milton na Cia das Letras, sugeriu que ele juntasse esses novos contos com o argumento do filme e os transformasse em uma novela. Eu nunca soube de um conto que virou filme e de um filme que virou novela. Estou torcendo muito que essa adaptação aconteça.
Que conversação essa sua imersão nos rios da Amazônia trava com "Cidade Baixa", tua estreia na ficção? Sérgio Machado: Meus filmes se passam em universos masculinos, mas acredito que, neles, a razão está sempre com as mulheres. As personagens da Sophie Charlotte e Alice Braga, nesses dois filmes, usam quase sempre a cor vermelha. Elas estão sempre na parte mais iluminada do quadro. Abrem portas e janelas, tentam libertar os homens, mas eles não entendem e continuam presos a valores antigos. Acho que a Bahia, onde eu nasci e fui criado, é uma terra determinada pela herança do candomblé e é um lugar onde as mulheres são muito fortes. Fui criado sob o matriarcado. Talvez essa seja uma razão. O curioso é que me dei conta de que mesmo na "Arca de Noé", projeto de animação que estou fazendo para crianças, os dois protagonistas são ratos que disputam a atenção de uma ratinha. Há também uma correspondência entre o calor da Amazônia e da Bahia. O Amazonas é predominantemente indígena e a Bahia é negra. Acho que por isso são lugares de sexualidade mais livre com menos influência da repressão judaico cristã. Nos dois filmes, as paisagens onde a história se passa influenciam e refletem no estado de espírito dos personagens.
Em que porto a tua "Arca de Noé" está atracada hoje? Sérgio Machado: "A Arca de Noé", um filme de animação, está navegando agora de vento em popa. A CMG, nosso sales agente americano, já vendeu o filme para mais de 25 países e temos a expectativa de vender bem mais quando o filme ficar pronto. Terminamos a pré-produção no Brasil, e, agora, tem uma equipe de 250 profissionais indianos a trabalhar incessantemente na parte técnica de 3D, sob nossa supervisão. Os últimos anos foram difíceis por conta da pandemia. Montamos uma produtora que nem chegou a ser utilizada por conta do Covid, sofremos também com toda a falta de apoio à cultura nos últimos anos. A Gullane, a VideoFilmes e a NIP, nossas produtoras, tiveram que se virar para avançarmos sem interrupção. Mas, agora, estamos firmes e fortes e prontos para lançar o filme no segundo semestre do ano que vem. Todos que estão vendo as cenas que já ficaram prontas têm se surpreendido que com a qualidade técnica que conseguimos alcançar. Gravamos as vozes em inglês, com a participação de brasileiros como Rodrigo Santoro, Marcelo Adnet e Alice Braga. Ano que vem vamos gravar a versão brasileira. As canções de Vinicius de Moraes para crianças foram arranjadas por Beto Villares e regravados por músicos como Adriana Calcanhoto, Baiana System, Larissa Luz, Chico César e Mariana de Moraes e outros. Estamos todos numa grande expectativa. Os números em torno de uma animação são muito maiores do que uma filmagem com atores: o tempo de produção, o orçamento e a expectativa de distribuição e de bilheteria são de outra ordem.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.